Dia 1 de Novembro de 1952. A estranha procissão da alegria dos cemitérios…

Dia 1, de Todos os Santos, calhou a um sábado e houve, assim, todo um fim de semana dedicado aos Fiéis Defuntos. Em Lisboa, os cemitérios distinguiam-se: Benfica era mais democrático, recebia ricos e pobres; Prazeres mais elitista; no Alto de São João havia os canteiros ornamentados; na Ajuda as luminárias dos ciganos.

No tempo da minha meninice “ia-se à terra”. À terra dos avós visitar os mortos numa estranha procissão de alegria dos cemitérios. A maior parte da gente que tinha “terra” (agora parece que já ninguém tem “terra” para a qual regressar, acho que nem eu tardarei muito a não ter Águeda para os meus regressos de peregrinação à infância, tão mal lhe têm feito) e ia no dia 1 de Novembro, feriado, Dia de Todos os Santos, antecipando o dia dos mortos, que é a 2, e dia de trabalho, Dia dos Fiéis de Deus ou Dia de Finados, um molho de flores depositado junto às campas, colorindo a escuridão própria de um lugar de sombras e de fantasmas, rodeado de ciprestes que são as árvores onde, em geral, os pássaros não fazem ninhos.

Em 1952, o dia 1 de Novembro calhou a um sábado e o 2 a um domingo. Veio mesmo a calhar. Pôde ir à “terra” quem tinha “terra”. Os outros, os que a não têm, costumam ser de Lisboa e ponto final. As vendedeiras de velas montaram bancas por todos os cemitérios da cidade para que quem quisesse pudesse alumiar os seus mortos. Em vez de haver um dia de finados, houve dois, por assim dizer. Mandaram-se rezar missas, muitas à beiras das campas, missas a tostão, quantas delas. 

Na velha capital do Império dizia-se que não havia dois cemitérios iguais. Cada um tinha o seu caráter, a sua personalidade. Benfica era lugar de ricos e pobres sem distinção. Democrático com os cadáveres, portanto. Os Prazeres eram mais fechados, mais elitistas. Serviam, nesse tempo, para os mortos vizinhos, os mortos que morriam mais perto, os mortos mais distintos, campas davam lugares a jazigos enfeitados, os pobres e os ricos também se diferenciam depois de terem partido para o outro mundo pela última morada onde vão para os seus cadáveres. No Alto de São João havia a tradição dos jardineiros apresentarem o seu trabalho como obras de arte, construções coloridas em canteiros requintados, havia quem lá fosse sem precisar de carregar a tristeza da perda aos ombros, só pelo gosto de apreciar a manipulação florida, arrebicada, o hábito perdeu-se, os tempos não estão para essas coisas de pormenores, a morte transformou-se numa vulgaridade entregue burocraticamente a uma companhia funerária para que a gente tenha as menores chatices que puder na hora de nos libertarmos dos corpos que ficam a embaraçar-nos as mãos. A Ajuda era, nos anos-40 e 50, o lugar onde se enterravam os ciganos. Havia a manifestação típica das luminárias que os tempos também atiraram para os poços do olvido. Mas ainda havia alguns que mantiveram o hábito nesse dia 1 – e um murmúrio calmo percorria os grupos vestidos de negro que usam o luto todos os dias e não apenas nos dias em que perdem um dos seus.

Bancas de vendedores de flores ladeavam as ruas que iam dar aos cemitérios. A morte também é um negócio. Sempre foi; sempre será. Uma senhora gorda não escondia o sorriso alargado por aqueles dois dias seguidos de lucro. As flores mais nobres chegavam aos 24 escudos a dúzia, nem todos se contentavam com jacintos, muitos perdiam o amor ao dinheiro e deixavam que os bolsos se abrissem por força dos ventos da saudade. A senhora gorda fazia tilintar moedas no bolso da frente do avental à medida que satisfazia os gostos diversificados dos fregueses. Centenas de contos foram gastos nesse fim de semana, calculavam os jornais. Por muitos túmulos solitários que continuassem despidos de um goivo que fosse.