Ana Moura. “O Prince estava sempre a dizer-me: ‘A tua música precisa de um beat’”

Com um álbum novo que vira do avesso tudo aquilo que estávamos habituados a ouvir de Ana Moura, Casa Guilhermina, lançado esta sexta-feira, é uma nova fase da carreira da fadista, que sai da caixa do fado tradicional para um novo estilo, com elementos da música africana e eletrónica. À LUZ, a fadista diz que…

Apesar de ser uma das artistas de maior sucesso em Portugal, considerada uma das maiores fadistas do séc. XXI, de já ter vendido mais de um milhão de discos em todo o mundo, de ter atuado com conceituadas lendas, como Prince, no Super Bock Super Rock, em 2010, Ana Moura não se sentia concretizada. 

Apesar de todo este sucesso, a fadista confessa à revista LUZ, que se sentia «vazia», que precisava de um novo desafio. 

Nesse sentido, a mulher que deu a voz a músicas que marcaram a música portuguesa lançada no presente século, como o Desfado, decidiu colocar de lado o fado tradicional, que tanto caracterizou o início da sua carreira e partir para uma nova aventura musical. 

Banhada por influências musicais que caracterizam a nova noite lisboeta, como a eletrónica e a música africana, a fadista deixou-se contagiar por todos estes sons e decidiu criar um álbum que fosse uma reflexão mais correta de tudo aquilo que existe no seu íntimo. 

Em Casa Guilhermina, disco lançado esta sexta-feira, dia 11 de novembro, Ana Moura abre as portas da sua casa, batizada com o nome da sua avó, e revela um novo lado aos seus fãs. 

 

O novo disco, Casa Guilhermina, é uma compilação de várias músicas que foi fazendo ao longo destes últimos anos e que demonstra uma mudança de estética em relação ao que tinha habituado os seus fãs. O que é que a motivou a mudar este som que já tinha vindo a estabelecer?

Passei os últimos anos a percorrer o mundo, em concertos, e já não gravava há algum tempo. Quando regressei ao estúdio, para gravar alguns temas que diversos compositores me tinham enviado, percebi que o facto de não ter parado me fez sentir vazia. Aquilo que estava a gravar não era aquilo que tinha para dizer. Foi nesse momento que decidi parar, pedi ao meu manager para não me marcar tantos concertos e comecei a passar mais tempo em Lisboa, porque agora estou a viver em Cascais. 

O que é que estas folgas lhe ofereceram?

Elas permitiram-me ter mais tempo para sair e descobrir algumas coisas novas que estavam a acontecer na cidade, como as noites da editora Príncipe, as festas Na Surra, que fazem parte da residência mensal da editora Enchufada, do Branko, no B.Leza, onde conheci o Pedro da Linha que acabou por se tornar o produtor deste disco. Esta pausa permitiu-me apaixonar por mundos novos e fez-me contagiar por todos estes géneros musicais que, apesar de terem sempre feito parte do meu universo, nunca tinha partilhado com o meu público. Foi isso que fez com que desse este passo. Convidei o Pedro da Linha, o Pedro Mafama e o Conan Osíris durante o primeiro confinamento para se juntarem em minha casa e começarmos a compor livremente. Cada um oferecia uma estética e uma linguagem musical própria e todas elas fizeram sentido juntas quando começámos a criar o disco. 

Apesar de não surgir diretamente citado nas canções como um participante, o Conan também participa nas músicas?

O Conan trabalhou connosco no início e fez parte da produção e composição de algumas músicas, por exemplo, a Agarra Em Mim ou a Classe, que, apesar de ser um fado tradicional, a letra foi escrita por ele. Mas depois, quem acabou por “agarrar” mais a produção do resto do álbum foi o Pedro da Linha, com a coprodução do [Pedro] Mafama. 

Com o lançamento deste álbum está a abrir-nos as portas da “Casa Guilhermina”. O que é que os fãs podem esperar quando entrarem?

Estou a abrir as portas, na verdade, da minha própria casa. A minha casa também se chama Casa Guilhermina. Há uns anos estava apaixonada por azulejos, gostava muito de pintá-los, e decidi dar um nome à minha casa e aproveitei para homenagear a minha avó Guilhermina. Na altura em que começámos a fazer o disco na minha casa, percebi que todas as suas divisões faziam de mim aquilo que eu sou. Com todas as camadas que me compõem. Achei que era um nome que fazia todo o sentido para o disco. 

O que é que podemos descobrir nas diferentes divisões?

Agora, os fãs podem esperar descobrir sonoridades que antes não encontravam no meu trabalho. A minha mãe nasceu em Angola e o meu pai nasceu no norte de Portugal, em Amarante. Eles gostam muito de música, por isso, cresci rodeada de sons de diferentes sítios. Adoro malhões ou viras minhotos, fados, como também gosto de semba ou kizomba. Tudo isto eram músicas que ouvíamos nos nossos convívios familiares. Na altura da revolução, os meus pais regressaram para Portugal e, como a minha mãe era uma professora jovem e não conseguia estar efetiva em nenhuma escola, percorremos o país muitas vezes. O meu irmão nasceu em Paredes, no Porto, e eu em Coruche, no Ribatejo, onde passei a minha infância.

O local que a viu nascer também surge no disco?

As sonoridades do Fandango são-me muito familiares e fazem-me vibrar muito. Este disco convida as pessoas a entrarem no universo musical que faz parte da minha vida. Quero muito partilhar tudo isto com quem estiver disposto a recebê-lo.

Estava a explicar que este disco é uma homenagem à sua avó. O que é que a sua avó representa para si em termos musicais?

A minha avó cantava muito bem, mas, essencialmente, aquilo que deixou em mim foi o seu espírito de guerreira. Sendo filha de um português com uma mãe angolana, ela tornou-se nesta mulher guerreira, filha de dois mundos, mas manteve alguns traços que eu admirava muito. Ela era muito doce, mas ao mesmo tempo muito forte, determinada, sensível e sonhadora. Revejo-me em todas essas características. Ao longo da minha vida, por me considerarem doce, achavam que ia fazer tudo o que me pediam. E aconteceu, de facto, muitas vezes. Mas sempre fui determinada e procurei fazer aquilo que realmente queria e isso são traços que revejo da Avó Guilhermina. 

A sua avó era uma pedra basilar na sua família?

Para a minha família, especialmente entre as mulheres, que entram todas neste disco, numa das músicas, onde fazem coros, a nossa avó sempre foi a grande referência. Aquela figura irrepreensível da família. 

É fácil perceber que o passado ocupa um espaço muito importante neste disco. Foi importante homenagear as suas raízes africanas neste trabalho?

A música africana chegou ao disco depois de a ter redescoberto na noite de Lisboa. Comecei a perceber que a minha história, era a história de muita gente. Às vezes podemos pensar que só nós é que temos esta herança, mas afinal há mesmo muita gente com este tipo de raízes. Foi muito estimulante começar a conhecer as pessoas que trabalham com este tipo de sons – e isto moveu-me a também querer incorporar estes sons. Foi um processo muito natural. 

Como é que esta vontade se traduziu no processo de criação musical?

A primeira música a ser feita para este disco foi uma homenagem à minha prima Cláudia. Crescemos juntas e sempre nos disseram que éramos muito parecidas fisicamente, até nos costumavam perguntar se éramos irmãs gémeas. Ela, entretanto, faleceu e eu queria fazer uma música para ela e acabei por dedicar-lhe um semba. 

Estes estilos musicais tinham um papel importante na vossa relação?

Estes são estilos musicais que nos ligavam imenso, recordo-me de entrar no carro dela e estar sempre a dar kizomba, mas mesmo quando éramos pequenas gostávamos muito de dançar com estes ritmos, inclusive para os nossos avós. Quis homenageá-la com uma música alegre porque era o que melhor a representava. Uma mulher muito forte sempre com um sorriso na cara. Tudo isto foi um processo muito natural. Hoje encontramos artistas como o Pedro da Linha, o Branko ou o Dino d’Santiago que nos fazem vibrar e isso é muito contagiante.

É interessante falar sobre esse tributo tão alegre, quando em Portugal temos a tradição de passar pelo processo de luto de uma forma muito mais sorumbática.

Não fazia sentido fazer de outra forma. Estou muito ansiosa por mostrar esta música aos nossos amigos mais próximos. Organizei uma listening session para apresentar o disco e quero muito olhar para as suas caras e reações enquanto ouvem estas músicas. 

Também tem uma música de tributo para o Prince, a Jaracandá. Quando é que decidiu que também iria homenagear este artista?

O Prince estava sempre a dizer-me: «A tua música precisa de um beat», mesmo já gostando do trabalho que estava a desenvolver. Depois de fazer a música para a minha prima, aventurei-me a escrever outros textos, algo que fiz pela primeira vez neste disco, antes, cantava sempre composições de outras pessoas, e decidi escrever para as pessoas que deixaram em mim coisas boas e que contribuíram para a pessoa que hoje sou. Decidi seguir o conselho do Prince e colocar um beat nesta melodia, de kizomba, e homenageá-lo desta forma. Onde ele estiver, acho que vai estar a gostar e a “groovar” com esta música.

Sente que este novo caldeirão de influências a representa melhor, assim como o meio que a rodeia?

Sem dúvida, tenho recebido muitas mensagens de pessoas que se queixam, a dizerem que já não se identificam com a minha música, mas isto é aquilo que eu sou. Quando mostrei pela primeira vez estas músicas a um grande amigo meu, ele disse-me logo: «Ana, esta és mesmo tu». Para quem me conhece sabe que eu sou todas estas influências e nós não temos que escolher ser apenas uma coisa. Deve ser dada a liberdade ao artista para se expressar como ele quer e o espaço para que este se possa encontrar e expressar da melhor maneira. 

Não a preocupou estar a alienar uma certa fação entre os seus fãs?

Não porque já sentia uma grande urgência para fazer aquilo que queria. Não sei se foi pelo facto de ser fadista e de existir um respeito enorme por este género e pelas pessoas que fazem parte da sua história, mesmo que desde sempre me tenha aventurado a fazer algumas coisas um pouco diferentes, mas estava a sentir como se tivesse pouco tempo para realizar certos sonhos. 

De onde é que acha que surgiu essa vontade?

Isto vem também do confronto mais próximo que tenho tido com a morte nos últimos anos, depois de ter perdido a minha prima, o meu irmão e a minha avó, por isso, estava a sentir uma grande urgência de querer realizar todos estes objetivos mais depressa. Não estava interessada em viver as expectativas de outra pessoa que eu nem sequer conheço pessoalmente. Aquilo que me interessa é sentir-me realizada, sonhar e manter a chama dos meus olhos acesa.

Neste novo álbum está claramente a sair da sua zona de conforto em relação aos trabalhos que fez anteriormente. Sente que pode ser uma influência para outros artistas que estejam à procura de fazer o mesmo?

Tenho recebido mensagens muito lindas de outros artistas, e de artistas mulheres. Perceber que consigo dar esta força a outras pessoas é algo incrível. Eu própria, inclusivamente, nunca pensei ter tanta força em determinados momentos. Por exemplo, se alguém me dissesse que daqui a uns tempos ia estar “gravidíssima”, a lutar com diversos problemas na vida, eu diria que ia perder as forças. Mas a verdade é que me sinto mais forte do que nunca. Não sei explicar o como, mas acredito que é por estar a ser tão livre na escolha daquilo que quero fazer. Se eu conseguir fazer a diferença na vida de outras pessoas isso faz-me sentir ainda mais realizada.

Temos estado a falar sobre estas duas facetas da Ana, a fadista mais tradicional e, agora, esta mais virada para os sons do “novo-fado”, que temos vindo a ouvir em artistas como o Pedro Mafama ou a Rita Vian. Sente que pode ser uma ponte entre estas duas gerações?

Sim, essa é uma boa descrição daquilo que estou a fazer. Por exemplo, com o Pedro Mafama, tenho sido uma ponte para ele conhecer o fado mais tradicional. Eles abrem-me a porta a umas coisas e eu a outras. Mas acredito que para o público que nos ouve também posso ter essa função. Uma ponte do meu público para esta nova geração, mas o contrário também pode acontecer.

O Pedro Mafama foi um dos músicos a assumir o cargo de produtor da Casa Guilhermina, o que é que ele trouxe de novo para o seu trabalho?

A minha decisão de trazer o Pedro para este projeto deve-se à sua capacidade para construir conceptualmente uma ideia na sua cabeça e imaginação. Neste caso, ele conseguiu trazer elementos da nossa música tradicional para adicionar ao trabalho. 

Como é que funcionava a química de estúdio entre vocês e o Pedro da Linha?

Quando estávamos em estúdio, eu começava a construir uma melodia, o Pedro da Linha criava uma batida e o Pedro Mafama começava a descrever, de uma forma bastante visual, aquilo que ele via nos elementos da música tradicional que podiam entrar em determinada música. Essencialmente, esse foi o seu maior contributo. 

Mas o seu contributo ficou apenas fechado na música?

Depois, claro, foi algo que se estendeu a toda a linguagem estética e conceptual do disco, como o artwork, foi todo idealizado pelo Pedro e foi feita por ambos aqui em casa. A Joana Duarte, fundadora da Béhen, cedeu-nos tecidos e nós, na impressora, púnhamos os tecidos com fotografias e outros elementos que faziam parte da minha história e fazíamos impressões. Foi assim que todo o artwork do disco foi feito, completamente idealizado pelo Pedro. As texturas dos tecidos indicam as várias divisões da casa e em que espaço nos encontramos. Se são tecidos mais assinados representa que estamos numa parte mais íntima, como os quartos; os mais alegres representam a sala e o jardim. O videoclip também tem contado muito com a sua criatividade, especialmente na narrativa que os acompanha e que se funde com o disco.

Também colaborou no disco de estreia do Pedro Mafama, Por Este Rio Abaixo, lançado no ano passado. Portanto, queria fazer a mesma pergunta, mas no sentido inverso: o que é que a Ana acha que acrescenta ao trabalho do Pedro?

Nós temos um estúdio em casa, onde o Pedro costuma trabalhar. Ele constrói as suas músicas de uma forma mais eletrónica e o meu contacto com a música acontece de uma forma mais orgânica, com os sons mais humanos da música. Acho que nos complementamos bem nesse sentido. Aquilo que acrescentei e tenho acrescentado é esse lado mais natural na música do Pedro, é isso que tento puxar. Estas diferentes camadas fazem com que a música fique mais rica. Que uma música traga diferentes elementos para surpreender quem a está a ouvir. 

Uma das últimas músicas do disco é a Estranha Forma de Vida, uma homenagem à Amália. É uma forma de mostrar que não se esqueceu das suas origens?

Sem dúvida. Faço esta viagem no disco, convido as pessoas a fazerem-na comigo, a entrar nas divisões da casa que me compõe e, no fim, despeço-me elogiando todos os fadistas que tanto me ensinaram. No entanto, apesar de ser uma despedida, estou a regressar a este registo que tanto me caracterizou. Sinto que nunca abandonei o fado tradicional, mas, ao mesmo tempo, não pertenço só aqui, é essa a mensagem que queria deixar.

Agora, com o álbum acabado de lançar, resta saber o que é que tem planeado para a apresentação do disco?

A digressão de Casa Guilhermina vai começar em janeiro e vou levar estas músicas a sítios como Londres, Berlim ou Amesterdão. Em Portugal, ainda não existem datas certas, mas, no próximo ano, vou anunciar dois concertos em Lisboa e outro no Porto. Mas, antes de 2022 acabar, vou fazer uma brincadeira e anunciar, muito próximo da data, um concerto que servirá de abertura de portas para esta minha nova aventura. As pessoas vão ter a oportunidade de antever um pouco daquilo que será o meu novo espetáculo ao vivo.