Qatar. Ah! Eis os camelos! Grandessíssimos e alternadíssimos!

Desporto nacional, Desporto de Sheiks. As corridas põem a cidade de A-Shahaniya – escolhida pelos responsáveis da FPF para instalarem a seleção nacional durante o Mundial – em polvorosa. Num dia de festa podem ir para a pista 6000 camelos (por acaso até são mais numerosos os dromedários). Bichos caros, os campeões: atingem os 300…

AL-SHAHANIYA – Camelo. Ponho-lhe um ponto final e olho para trás, para a palavra que aparece no ecrã do computador, preto sobre o branco. Como é que, a partir daqui, escrevo doze mil caracteres ou coisa que o valha? O termo, só por si tem graça. Leva-nos de volta a O Pátio das Cantigas e ao grande António Silva: «Ò seu grandessíssimo e alternadíssimo camelo!». Claro que também podemos estar a falar de dromedários, conhecidos tecnicamente por camelos-domésticos. Mais práticos, menos vaidosos, só têm uma bossa em vez de duas. Ah, e ao contrário do que muita gente pensa, não acumulam água dentro das bossas. Não são nenhuns baobás. Acumulam, isso sim, gordura. A primeira vez que estive aqui, no Qatar, ainda sem estádios aos pontapés, convidaram-me para um jantar à moda beduína, no deserto, e o primeiro prato a ser servido foi bossa de camelo. Andei com os beiços ensebados durante três dias. Não caio noutra.

A palavra foi espalhada para ocidente, pelos romanos – camelus – e para oriente, pelos gregos – kamelós, e pelos hebreus e fenícios – gamal. E, assim sendo, ganhou uma interessante universalidade. Os estudiosos da fauna são de opinião que o ideal era tratar os bichos por camelídeos, de forma a albergar todo o tipo de camelos que existem, não apenas camelos camelos, mas os ditos dromedários e outros parentes próximos mas com características distintas. Claro que me vou estar um bocado nas tintas para os estudiosos da fauna – escrevo camelo e basta. Também entram na denominação de ungulados – uma divisão de mamíferos, geralmente com cascos – e são bem mais espertos do que os humanos fizeram deles. Aliás, se não fossem espertos, não tinham sobrevivido até hoje já que surgiram na Terra há mais de 6 milhões de anos, parece que na América, tendo migrado para a Ásia durante o Mioceno, pela zona onde fica agora o Mar de Bering.

Pois muito bem, estamos na Arábia, é terra de camelos, nada como ir à procura deles. A malta aqui no Qatar diverte-se muito com camelos. O lugar que os responsáveis pela seleção portuguesa escolheram para que a equipa de Fernando Santos se instalasse é o local ideal para encontrar camelos e diversão. Chama-se Al-Shahaniya e é uma região cuja capital tem o mesmo nome. Assim, tentando explicar por alto, o Qatar é uma espécie de polegar a pedir boleia que sai da palma da mão da Arábia Saudita, rodeado por mar exceto na zona em que os dois países fazem fronteira. Se Doha fica sobre a dobra da falange com a falanginha, logo abaixo da unha, Al-Shahaniya situa-se do lado oposto – e tem uma pista para corridas de camelos. Também tem um muito curioso hospital só para camelos (de quatro patas), em Al Tharb, mas vamos deixar de lado o hospital, os camelos que vi (de quatro e de duas patas) pareceram-me cheios de saúde.

As corridas de camelos são conhecidas por Desporto dos Sheiks. Porque não fica nada barato montar um centro de reprodução e de cuidados para os animais. Estamos a falar de bichos com bastante volumetria, prestem atenção. E que têm uma expectativa de vida entre os 40 e 50, lá está, se forem tratados nas palminhas. Não é preciso serem alimentados a pão-de-ló, como certos burros que nós conhecemos, para sentirmos algum respeito quando vemos um exemplar na nossa frente, com a cabeça bem acima do 1,85m e a bossa atingindo cerca de 2,15m. Há os de diversos pesos, uma característica importante se servem para correr. Vão dos 400 aos 600 quilos. E, conforme a sua mobilidade, atingem velocidades na ordem dos 65km por hora, em distâncias curtas, com os corredores de fundo a serem capazes de manter o ritmo tranquilo de 40km por hora. Muito razoável, convenhamos, sobretudo quando prestamos atenção ao pormenor daquelas queixadas triturantes, sempre numa espécie de movimento rotativo, o lábio inferior grosso dependurado, os dentes desacertados e atacados pelo verdete. Não, não se pode dizer que seja um animal particularmente bonito mas, com aquelas patas de sola larga, não há areia que lhes resista. Diz este pequenino guia, que consultei antes de me pôr ao caminho, que os camelos são os únicos ungulados que mantêm relações sexuais sentados sendo os machos capazes de quatro ejaculações consecutivas durante a mesma ação. Muito bem! Impressionante, sem dúvida. Quem diria que os camelos são uma espécie de metrossexuais do deserto?! Sempre a aprender. Se atendermos ao verbo ejacular no seu stricto sensu – expelir (líquidos) com certa força – até podemos dizer, sem receio, que os camelos também ejaculam pela boca. Na verdade, possuem um curiosíssimo órgão de nome dulla, inflamável, comprido e rosado como uma língua, situado num dos lados da boca, que segrega um líquido que ajuda a ruminação e liberta um cheiro característico que atrai as fêmeas. Muito bem! E fazem sexo sentados. É de homem!

Os camelos correm à sexta

Se o estimado leitor estiver no Qatar e acordar de manhã com uma vontade irresistível de comprar um camelo, então também tem de vir até Al-Shahaniya (pode igualmente comprá-lo pela internet, há alguns mercados online). Segundo as estatísticas, o Qatar é tão rico em camelos como Portugal é rico em pobres, como garantia o Almada. Há mais de 22 mil camelos no país, só para efeitos de reprodução e de serem utilizados em competição. Uma enormidade se pensarmos que, em todos os países do Golfo (e grandes que muitos deles são) o número de camelos anda por um total de 55 mil. Algo que faz dos qataris verdadeiros açambarcadores de ungulados. E há de quase todos os preços o que não significa o mesmo que para todas as bolsas. Um camelo assim mais para o vulgarzito custa cerca de 20.000 Rials (cada Rial equivale a 25% de um euro); os caros, de corrida, vendem-se calmamente acima dos 250.000 Rials, podendo mesmo atingir os 300 mil.

Confesso que não há nada de especialmente bonito em ver correr um camelo quanto mais dez à desfilada. Não têm a elegância dos cavalos, longe disso, e fazem um barulho preocupante de quem parece estar á beira de vomitar os pulmões. A época das corridas é agora, embora o Mundial esteja, por assim dizer, a abafar tudo. Costuma durar até fevereiro e as sextas-feiras são os dias nobres já que, sendo de descanso para todos, segundo a tradição muçulmana, abre a possibilidade para que a pista esteja rodeada de adeptos, alguns mesmo fanáticos, não tivessem eles apostado uns cobres largos no seu ungulado favorito. Geralmente, cada corrida tem um limite de cinco quilómetros. Mas nos dias de festivais, quando Al-Shahaniya se enche de gente e muito são os turistas atraídos pelo fudevu, podem ser percorridas outras distâncias até ao máximo de dez quilómetros. O objetivo é competir, não matar os bichos. Foi prática, até há bem pouco tempo, usar crianças de cinco ou seis anos de idade como jockeys já que os camelos com muito peso nas costas fazem como os muares e recusam-se a dar às canelas. Aos pouco, o bom senso foi imperando (até porque um obscuro e macabro mercado de crianças desatou a funcionar, traficando miúdos de dois e três anos de países como o Bangladesh ou o Paquistão) e os realizadores das corridas trataram de evitar as fortes críticas (e as inspeções oficiais levadas a cabo pelas autoridades) de que eram alvo, dispensando os meninos para irem às brincadeiras da sua idade e implantando um moderno sistema de controlo remoto no dorso dos animais. E as crianças passaram a ser os homens que, com os aparelhos nas mãos, parecem conduzir carros teleguiados. Neste caso com duas bossas. Ou só com uma.

Ouro pelo meio do pó

Levanta-se a poeira. Quase consigo imaginar uma formiguinha metida no meio daquela trupe de ungulados que parte à desfilada com as línguas de fora, a perguntar para um deles: «Já viste a quantidade de terra que estamos a espalhar?». Lançam-se numa luta por prémios valiosos. Não a formiguinha que é só pormenor meu para desenjoar de camelos. O grande vencedor do maior festival, O Festival do Emir, o bicho considerado como o supra-sumo dos camelídeos do dia, recebe a Espada do Emir. Quero dizer, o mamífero com bossas não recebe nada, talvez quanto muito, uma dose acrescida de alfafa, quem recebe é o dono. Uma honra danada! Nesse festival supremo, que não é como o de hoje, de corridas banais e apostas corriqueiras, o próprio sheik Hamad bin Jassin bin Fysal Al Thani está presente rodeado de toda a sua comitiva de malta de alvas dishdashas que lhes descem do pescoço até aos pés. Certo é que os melhores camelos em prova serão dele que não brinca com o desporto nacional do país que a sua família governa. Prémios secundários – não falando do dinheiro, que é primário – são as adagas de prata e ouro. Adagas típicas dos beduínos recurvas na ponta, pintalgadas de topázios, ametistas e rubis.

O Festival do Emir teve a sua primeira edição em 1972 e muito mudou até aos dias de hoje, sobretudo quando, em 2004, surgiu a proibição de se utilizarem meninos ainda pequenos como jockeys por uma questão de segurança e de decência, obviamente. Mas a verdade é que olhamos para os camelos e cada um deles tem um jockey às costas, devidamente vestido. Seria grotesco trocar meninos por anões, mas já vimos de tudo neste vasto mundo de Allah. Não, não são anões. São os tais aparelhos de comando à distância forrados com panos para que o turista não saia das pistas de Al-Shahaniya com a desagradável impressão de que esteve a ver uma versão demasiado hodierna de uma tradição que se perde na noite dos tempos. Dizem todos aqueles com quem falámos que os jockeys-robot são absolutamente fiáveis desde que os que estão aos comandos saibam da poda. Também custam o suficiente para garantirem tal fiabilidade, ora essa: cinco mil e tal dólares cada um, com o peso máximo de 25 quilos. Um mecanismo complexo que possui a curiosa opção de pôr o homem que o maneja em contacto direto com o bicho através da voz – tem acoplado um microfone pelo qual são transmitidas as ordens gritadas aos ouvidos do camelo. Afinal tratam-se e alimárias estragadas com mimos e que necessitam de ouvir palavras de incentivo por parte dos seus tratadores. E os tratadores seguem-nos, com as cabeças esticadas para fora das capotas dos jipes que, numa pista paralela, fazem o mesmo percurso do que os camelos, buzinando no meio dos gritos para excitar a sua veia competitiva.

Depois de vários dias incomodativamente pouco quentes – a febre do ar condicionado tomou de tal forma conta da cabeça dos qataris, provavelmente amedrontados por tudo quanto se disse e se escreveu sobre este Mundial ameaçadoramente disputado sob altíssimas temperaturas (a ignorância, até meteorológica, dos meus colegas humanos nunca deixa de me surpreender), fez com que qualquer edifício e os seus espaços exteriores estejam monitorizados para uns nada confortáveis 18º – sexta-feira, às portas do deserto, fez-me finalmente suar. Como se me estivesse a solidarizar com os concorrentes das provas a que assisti. E, no entanto, vim cedo. Eram nove horas da manhã quando cheguei e franzi o nariz perante o odor intenso dos bichos e das suas secreções. Talvez eles também tenham franzido os focinhos ao cheiro da minha sudação, mas também andam sempre com os focinhos meio franzidos, ninguém dá por ela. Uns quilómetros para lá do Estádio de Al Rayann, para quem se dirige para o interior, há um cartaz bem explícito, em árabe e em inglês. Opto pela versão inglesa: «Camel Race». Ora bem, é mesmo aqui que me preparo para umas horas bem passadas. Vagueio por aquilo que posso chamar de padocks antes de escolher um lugar na bancada principal. Já cá tinha estado e nada mudou, aparentemente. Camelos, camelos e mais camelos, mesmo que tantos deles sejam dromedários. Nunca estive aqui com as bancadas repletas, há lugar nelas para mais de cinco mil pessoas, mas já ouvi falar do outrora famoso Al Jazeera, campeão dos campeões, um ser fabricado por inseminação artificial, isto é, com um ADN construído para se tornar um vencedor desde que nasceu. Deu resultado. Al Jazeera foi um dos mais populares camelos do Qatar, levado ao colo pelos seus tratadores (tinha um treino especial feito numa piscina para que nadasse e, com isso, afinasse os músculos para obter maiores velocidades) e com uma legião de fãs que vinha de Doha de propósito para o ver correr. Ou mesmo nem isso. Muitos vinham somente para vê-lo ao vivo. E admirar o seu aplomb. Acho que, até agora, ninguém se lembrou de criar uma coleção de cromos de camelos de corrida. Ainda vai a tempo.