Sight and Sound. Uma lista que quer garantir “o cinema e a sua memória estejam do lado certo da história”

O i falou com realizadores portugueses para perceber como as alterações na lista de 100 melhores filmes de sempre da revista Sight and Sound refletem o atual estado do cinema.

Uma lista vale o que vale. Opiniões são subjetivas e é impossível que a sua aglomeração, especialmente quando se trata dos mais diversificados objetos, esta possa agradar todas as pessoas de forma unânime. Mas quando uma lista é organizada por mais de 1600 especialistas é normal que, mesmo que sejamos muito céticos, espreitar com curiosidade para ver (pelo menos) quem é que ficou em primeiro lugar.

De dez em dez anos, a revista britânica Sight and Sound organiza uma lista com os cem melhores filmes de sempre, e, no início deste mês, lançou a sua mais recente edição, que conta com algumas surpresas.

“As alterações são evidentes”, começa por observar o realizador português, Marco Martins, responsável por filmes como São Jorge ou Alice, afirmando que existe uma “pluralidade maior nas escolhas, sobretudo na representatividade de filmes realizados por mulheres, algo que não existia tanto nas seleções anteriores”, algo que se torna óbvio quando nos deparamos com o filme que ficou em primeiro lugar nesta seleção: Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman.

O filme, considerado a obra maior da realizadora belga, um ícone do cinema feminista e avant-garde, é assim o quarto filme a ocupar a primeira posição desta lista, depois de Bycicle Thieves (Ladrões de Bicicletas), em 1952, Citizen Kane (O Mundo a seus Pés), entre 1962 e 2002, e Vertigo (A_Mulher que Viveu Duas Vezes), em 2012.

“Não desmerecendo Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles”, começa por dizer Manuel Mozos, cineasta responsável por filmes como Xavier ou Ruínas, que acrescentou que chegou a conhecer a realizadora quando esta ainda era viva, confessa “que sinto que existe qualquer coisa um pouco diferente de anteriores listagens”.

“Para mim, as listas valem o que valem, podem ser interessantes para descobrir alguns títulos desconhecidos e louvo o esforço para que se olhe com mais atenção para filmes realizados por mulheres, mas julgo que houve claramente uma jogada para tentar contrariar alguns títulos mais estabelecidos no cânone do cinema e isso reflete esta maior variedade”, expõe Mozos.

Mas para alguns, esta variedade ainda não é suficiente. “A lista do Sight and Sound é relativamente compreensível na sua seleção”, argumenta o realizador e ator luso-guineense, Welket Bunguê. “Ao longo dos anos, os títulos favoritos da lista vão mudando subtilmente, apenas. A meu ver, é uma lista importante, na medida em que reflete sobretudo como o cinema ocidental moldou a nossa percepção do cinema global, enquanto movimento criativo. No entanto, para mim – e acredito que para muitos da minha geração, –, é difícil acreditar que o predomínio de títulos dominantemente Europeus e Americanos sejam os filmes que moldam a percepção do cinema global e multi-cutural que se tem hoje”, afirma o homem que este ano fez parte do elenco do mais recente filme de David Cronenberg, Crimes of the Future.

Nesta nova seleção, que contou com um total de 1639 distribuidores, críticos, académicos e escritores, observamos a saída de alguns títulos que podem ser considerados “clássicos”, desde O Padrinho, Parte II (1974), de Francis Ford Coppola, O Touro Enraivecido (1980), de Martin Scorsese), diversos filmes de Ingmar Bergman, como o Sétimo Selo (1957), Morangos Silvestres (1957) e Fanny e Alexandre (1982), ou Nashville (1975), de Robert Altman.

Em sentido inverso, é notória a entrada de diversos filmes atuais realizados por mulheres, como o Retrato de Uma Rapariga em Chamas (2019), de Céline Sciamma, na 30.º posição, cineastas negros, Get Out (2017) (95.º), de Jordan Peele e Moonlight (2016) (60.º), de Barry Jenkins , ou de longas-metragens asiáticas, como Parasitas (2020) (90.º), de Bong Joon-ho .

Além disso, também foi a primeira vez que filmes de animação foram incluídos na lista, nomeadamente O Meu Vizinho Totoro, de 1988, em 72.º, e A Viagem de Chihiro, de 2001, ambos do Studio Ghibli e realizados por Hayao Miyazaki.

“Acho que a atualização desta lista representa melhor o panorama atual de como se olha para o cinema”, considera o argumentista (Os Gatos não tem Vertigens) e realizador (Revolta), Tiago Santos, “não apenas daquele que estamos a viver, mas também aquele que ficou gravado nestes mais de cem anos de história”.

O cineasta afirma que esta nova expansão de críticos permitiu também uma expansão de “perspectivas e opiniões”.

“Algumas opiniões serão objetivas, outras condicionadas por fatores sociais e pela tentativa de encontrar algum equilíbrio em termos de quem e que filmes é que estão representados nesta lista, procurando uma espécie de justiça à posteriori, desejando um equilíbrio de género e experiências impossível”, classifica, apontando para o facto deste equilíbrio não existir no cinema do século XX, “quando estava quase exclusivamente nas mãos de cineastas e produtores que eram homens heterossexuais e brancos (no caso do cinema ocidental)”, acrescenta.

 A realidade é que existem muitos novos destaques, especialmente entre o novo Top 10. Podemos ter alguns “suspeitos do costume”, como Vertigo (2º), Citizen Kane (3º), 2001: Odisseia no Espaço (6º) ou o Serenata à Chuva (1952), mas temos também filmes asiáticos como Tokyo Story (que desceu da terceira, para a quarta posição) ou In the Mood for Love (5º), respetivamente, do japonês Yasujirô Ozu e do realizador de Hong Kong, Wong Kar-wai, e, na sétima posição, o Beau Travail, de Claire Denis.

Os restantes filmes desta lista são Mulholand Drive (8º) de David Lynch e Man with a Movie Camera (9º) de Dziga Vertov, lançados em 2001 e 1929, respetivamente.

Mas, mesmo com toda esta representação, encontramos ainda filmes africanos, como Touki-Bouki de Djibril Diop Mambéty ou Black Girl de Ousmane Sembène, não existe um único filme de um realizador da América Latina, ignorando longas-metragens como a Cidade de Deus de Fernando Meirelles e Kátia Lund, ou cineastas como o influente Luis Buñuel, Alfonso Cuáron ou Alejandro G. Iñárritu.

Para Marco Martins, a representatividade em falta não se fecha no género, na étnia ou também na nacionalidade, mas também no estilo.

“Existe uma falta de representatividade em termos de estilos, com a falta de documentários nas posições de maior destaque, não há um único filme de Frederick Wiseman, é um pouco estranho”, afirma.

Contudo, quando questionado se estas seleções podem contribuir para um revisionismo histórico, o realizador de São Jorge refuta esta teoria, na sua visão são as “modas”.

“O facto de não existir um único filme do Pasolini não tem a ver com revisionismo histórico, tem a ver com uma moda e com o facto de existirem filmes que estão mais dentro dos arquivos, são mais programados e acabam por ser mais vistos. Porque é que o Tokyo Story do Ozu que entra no top 10 e não outros filmes dele, como o Primavera Tardia ou outros que são mais interessantes? Este é o filme que associamos mais ao realizador”, argumenta Marco Martins, acrescentando que também devia existir ainda um maior destaque a filmes construtivistas russos, “um período muito importante para toda a linguagem do cinema e que influência o modo como olhamos hoje para o cinema”. Dentro deste estilo, encontramos o O Homem da Câmara de Filmar (1929) de Dziga Vertov ou O Couraçado Potemkine (1925) de Sergei M. Eisenstein, na 54º posição.

Tiago Santos não concorda com este olhar, afirmando que existe efetivamente um revisionismo histórico, mas que este acontece de forma a garantir “que o cinema e a sua memória estejam do lado certo da história”.

“Se existe revisionismo histórico, e existe, é pelo receio natural de apontar obras que, vistas agora pela lupa de uma sociedade contemporânea que é em parte mais evoluída, são impossíveis de defender”, apontando para obras como Birth of the Nation do D.W. Griffith, “mesmo sendo uma pedra base na arte cinematográfica”, e também para o “terrivelmente racista o cinema da Leni Riefensthal”, argumentando que, apesar de “esteticamente deslumbrante, é também – e acima de tudo – propaganda nazi e não deve nunca ser celebrado”.

“Julgo que há uma preocupação – por parte de quem vota – que o cinema e a sua memória estejam do lado certo da história”, expõe o cineasta.