Brasil: Desfecho de uma invasão anunciada no WhatsApp

Invasão começou a ser planeada a 5 de janeiro. Nos EUA, Biden é pressionado a expulsar de solo norte-americano Bolsonaro, que ontem deu entrada num hospital na Flórida.

Brasil: Desfecho de uma invasão anunciada no WhatsApp

A tarde de domingo ia longa em Brasília quando as forças policiais retiraram os últimos manifestantes que ocupavam o Congresso, pondo fim à tentativa fracassada de golpe, que começara quatro horas antes, com a invasão dos edifícios dos poderes legislativo, executivo e judicial do Brasil.

Contudo, as cenas de caos e destruição não deveriam ser uma surpresa. Há várias semanas que, um pouco por todo o Brasil, decorriam protestos de apoiantes de Jair Bolsonaro, ex-Presidente do Brasil, que contestam a vitória de Lula da Silva nas eleições presidenciais.

Os pedidos de uma intervenção militar antidemocrática que tomasse o poder no país culminaram na chegada de dezenas de autocarros a Brasília com centenas de manifestantes que furaram as barreiras de segurança da polícia montadas à volta da Praça dos Três Poderes e invadiram o Congresso, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal do Brasil.

A ideia terá começado a ganhar forma através de mensagens em grupos do WhatsApp que sugeriam “tomar as ruas” da capital do país e recomendavam “trazer equipamentos como capacetes, luvas, coletes, máscara de gás e óculos de natação contra efeito de gases”. De acordo com a plataforma Palver, responsável por monitorizar cerca de 17 mil grupos que partilham conteúdo sobre política brasileira, as mensagens terão começado a circular no WhatsApp desde, pelo menos, dia 5 de janeiro, cita a agência brasileira de combate à desinformação Lupa.

Os bolsonaristas, na sua maioria vestidos de verde e amarelo e com bandeiras do Brasil às costas, filmaram-se a vandalizar os edifícios, a quebrar janelas, portas e cadeiras, a danificar obras de arte, e a destruir documentos, tudo isto com o beneplácito de agentes da Polícia Militar do Distrito Federal, que foram vistos a filmar os manifestantes e a comprar água de coco.

Não é segredo nenhum que as forças de segurança estão mais do lado de Bolsonaro do que de Lula. O discurso do ex-Presidente ao longo de seu mandato construído em torno da importância da segurança garantiu-lhe aliados na polícia e nas forças armadas. Apesar disso, Bolsonaro não reivindicou a tentativa de golpe ocorrida em Brasília.

Quebrando o longo silêncio em que se escudava desde que Lula tomou posse, comentou a situação através do Twitter, ainda que sem uma condenação clara da invasão. “Manifestações pacíficas, na forma da lei, fazem parte da democracia. Contudo, depredações e invasões de prédios públicos como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda em 2013 e 2017, fogem à regra”, escreveu, garantindo que sempre esteve “dentro das quatro linhas da Constituição” brasileira e repudiando “as acusações sem provas” do atual chefe do Executivo brasileiro, que o responsabilizou pela situação.

“Esse genocida não só provocou e estimulou isso como, quem sabe, está estimulando ainda pelas redes sociais, lá de Miami para onde ele fugiu para não me colocar a faixa [presidencial, no dia da tomada de posse]”, sugeriu Lula, sem nunca pronunciar o nome Bolsonaro.

Reagindo a partir de Araraquara, no Estado de São Paulo, para onde se tinha deslocado para avaliar os danos causados pelas chuvas fortes, o Presidente recém-empossado acabou por decretar a intervenção federal em Brasília, com o seu Governo a tomar as rédeas da segurança na capital, depois de apontar o dedo à Polícia Militar.

“Quem tem de fazer a segurança é a Polícia Militar do Distrito Federal, que não fez. Houve incompetência, má vontade ou má fé de quem cuida da segurança pública do Distrito Federal”, acusou.

Sem qualquer sinal de pacificação no seu discurso, prometeu mão pesada à conivência das autoridades. A mensagem não tardou a ter efeitos práticos. Anderson Torres, secretário de Segurança do Distrito Federal e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, acabou demitido. E o governador de Brasília, Ibaneis Rocha, conhecido aliado de Bolsonaro, foi suspenso durante 90 dias pelo Supremo Tribunal Federal na sequência dos acontecimentos de domingo.

Ontem ao fim da tarde, segundo o ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil, Flávio Dino, saldavam-se cerca de 1500 detenções, sendo que a maioria dos detidos estava no acampamento de apoiantes de Bolsonaro, junto ao Quartel-General do Exército, em Brasília, que foi desmantelado na manhã de segunda-feira. Entretanto, o Governo brasileiro abriu um canal de denúncias para que toda a sociedade brasileira possa fazer chegar informações sobre os organizadores da invasão.

Enquanto o Governo de Lula tenta encontrar culpados, a tensão também aumenta fora do Brasil. Depois de apoiantes do ex-Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, invadirem o Capitólio há dois anos, com Bolsonaro ainda resguardado na Flórida, o Presidente norte-americano Joe Biden é agora pressionado a extraditar o ex-Presidente brasileiro.

“Os Estados Unidos não deveriam ser um refúgio para esse autoritário que inspirou o terrorismo doméstico no Brasil. Ele deveria ser enviado de volta para o Brasil”, defendeu o congressista democrata Joaquin Castro na CNN. O apelo foi repetido pela colega Alexandria Ocasio-Cortez: “Os EUA devem deixar de conceder refúgio a Bolsonaro na Flórida”, escreveu no Twitter.

Coincidentemente, ou não, Bolsonaro deu ontem entrada num hospital nas proximidades de Orlando, na Florida, onde se encontra internado e sob observação médica, alegadamente devido a um “desconforto abdominal” ainda relacionado com a facada que sofreu em 2018, durante a campanha para as eleições presidenciais daquele ano.