Dois pesos, duas medidas

Todo o establishment ortodoxo parece temer muito mais o Chega do que os figadais inimigos da ‘democracia burguesa’ que felizmente nos rege.  Porquê estes dois pesos e duas medidas?

Por Maria de Fátima Bonifácio

O Chega continua a assombrar a nossa vida democrática tal como a entende o establishment ortodoxo que nos governa desde 1976. É acusado de ser um partido de extrema-direita e, como tal, um intruso ilegítimo na nossa pachorrenta casa democrática; um partido anti-sistema, de protesto, apostado na defesa dos ricos e no ataque à imigração, com destaque para a etnia cigana. Além disto, defende coisas indefensáveis como sejam a castração química de pedófilos contumazes e a prisão perpétua para crimes de excepcional gravidade. Não disputo a bondade ou a maldade de medidas deste jaez. Como não disputo a bondade do ‘populismo’ de que o Chega é igualmente acusado.

Limito-me a constatar que o Chega respeita a Democracia e nunca pôs em causa os nossos direitos, liberdades e garantias. O desrespeito pelos nossos direitos, liberdades e garantias é um privilégio da extrema-esquerda. Muito recentemente – há dias –, o Bloco propôs a proibição de vender casas a estrangeiros e a obrigatoriedade de arrendar casas desocupadas: um escabroso e descarado atentado contra o direito de propriedade privada.

O PCP, por amor dos pobres e desvalidos – não diz uma frase em que não conste a alusão aos direitos dos trabalhadores, vítimas da exploração capitalista e de um governo que considera de facto de direita – recomenda que se taxem mais pesadamente os «lucros excessivos» das empresas mais eficientes, que seriam por conseguinte castigadas pela sua melhor performance. Ora todos sabemos que o PCP, dentro de uma tradição que remonta a Marx e a Lenine, alimenta um radical desprezo pela democracia representativa e recomenda a ditadura do proletariado como método ou sistema para emancipar a classe trabalhadora e libertá-la da opressão e exploração do capitalismo. Álvaro Cunhal disse em tempos que em Portugal nunca existiria uma democracia burguesa! Por outras palavras: a colaboração do PCP com a democracia burguesa em que felizmente vivemos não passa de uma hipocrisia, um fingimento enquanto a História roda até que a roda se detenha finalmente na excelsa ditadura do proletariado. Até lá, devemos encarar os comunistas como uma espécie de camuflados no seio da Democracia. 

Há entre o Chega e o PCP e, por outro lado, o Bloco de Esquerda, uma diferença fundamental: o primeiro não ameaça a Democracia nem nunca sugeriu a sua substituição por um regime ditatorial; já os outros dois estão na Democracia de má fé, com intenções reservadas, procurando, enquanto não chegam os amanhãs que cantam, estatizar o actual regime até aos limites possíveis. Porém, todo o establishment ortodoxo parece temer muito mais o ‘Chega’ do que os figadais inimigos da ‘democracia burguesa’ que felizmente nos rege. Porquê estes dois pesos e duas medidas?
A Esquerda tem licença para tudo, incluindo o mais desbragado populismo, que não fica atrás do populismo do Chega.

Só à Direita é que o populismo é perigoso; só da Direita é que vêm os riscos e perigos para o regime democrático. Por outras palavras: em Portugal só há licença para ser de esquerda, tolerando-se, quando muito, o centro-direita representado pelo tíbio PSD. Mais exactamente: a extrema-esquerda está bem instalada no regime, mas a extrema-direita é uma intrusa mal-vinda que deve ser ostracizada. 

Há quem diga que o modo como uma revolução se desenrola determina o carácter do regime que a seguir se estabelece. Esta desigualdade de tratamento entre Esquerda e Direita parece-me, entre nós, decorrer do modo como a revolução do 25 de Abril decorreu. O 25 de Novembro de 1975 foi uma contra-revolução incompleta – uma reacção à ‘intentona’ do 11 de Março, na sequência de cujo fracasso se criou o Conselho da Revolução e se institucionalizou o Movimento das Forças Armadas, que deixou o país nas mãos dos militares radicais, os principais impulsionadores de um PREC desaustinado que os portugueses esmagadoramente rejeitavam, como se viu pelos resultados eleitorais de 25 de Abril (o PCP apenas conseguiu 12% dos votos). Graças ao ‘Grupo dos Nove’, em que pontificavam Melo Antunes e Vasco Lourenço, apoiados por Jaime Neves e Ramalho Eanes, a hegemonia radical, i.e., do PCP, foi subjugada. Mas o PCP foi afavelmente acolhido na nova situação, conservando aliás muito da sua influência até pelos muitos lugares no aparelho de Estado de que se tinham apoderado desde o 25 de Abril até então, para não mencionar o quase monopólio do mundo sindical. Ao contrário de todas as aparências, a extrema-esquerda comunista, disfarçada de cordeiro, venceu no 25 de Novembro. O PCP não foi ilegalizado, bem pelo contrário, concorreu tranquilamente às eleições de 1976. Aquela vitória encoberta explica muito – ou tudo – do que se passa ainda hoje em Portugal: o predomínio indisputável da Esquerda e a consequente subalternidade da Direita; o inveterado hábito de julgar aplicando dois pesos e duas medidas.