Combater para dar uma oportunidade à Paz

Nesta edição dedicada à resistência heroica do povo ucraniano é importante recordar, telegraficamente, seis factos históricos essenciais ao correto enquadramento do que aconteceu nas últimas três décadas.

por Mário David
Ex-Secretário de Estado dos Assuntos Europeus e Deputado Europeu
Ex-Presidente da Associação dos Auditores de Defesa Nacional

1. A Independência da Ucrânia Desde que Mikhail Gorbachev assumiu o poder, em 1985, introduziu profundas reformas no quadro institucional da URSS, baseadas em dois princípios:  “glasnost” e “perestroika”. Palavras que significam transparência e reestruturação. Tal enfureceu os membros mais conservadores do Partido Comunista que tentaram um Putsch em Moscovo a 19 de Agosto de 1991, visando destituir Gorbachev, golpe esse que fracassou em 48 horas. 

Cinco dias depois, a 24 de Agosto, reúne em Sessão  Extraordinária o Soviete Supremo da República Socialista Soviética da Ucrânia, que vota favoravelmente a Declaração de Independência com 321 votos a favor, 2 contra e 6 abstenções! O mesmo plenário convoca, para 1 de Dezembro de 1991, um referendo nacional para legitimar essa votação É importante referir que este Parlamento era um Soviete do tempo da União Soviética, dominado pelo Partido Comunista, e não um grupo de independentistas revoltosos.

Segundo as sondagens, o apoio à independência foi crescendo de 67% em setembro a 77% em outubro, e chega a 88% quinze dias antes do referendo. Neste participam 84,18% dos eleitores, e 92,26% pronunciam-se a favor (quase 29 milhões de eleitores), e 7,74% votam contra (menos de 2,5 milhões)! Uma participação impressionante e um resultado esmagador!

Agora que vamos estando mais familiarizados com a geografia ucraniana e a sua divisão administrativa, recordemos que esta se divide em 24 Oblasts (distritos), 1 república autónoma (a Crimeia) e 2 municípios especiais (Kiev e Sevastopol, a capital da Crimeia). Recordemos alguns resultados particularmente importantes na atual conjuntura:

República Autónoma da Crimeia: 54,19% votos favoráveis;

Sevastopol cidade: 57,07%;

Luhansk oblast: 83,86%;

Donetsk oblast: 83,90%;

Odessa oblast: 85,38%;

Kharkiv oblast: 86,33%;

Kherson oblast: 90,13%;

Zaporizhzhia oblast: 90,66;

Kiev cidade: 92,87%;

Kiev oblast: 95,52%.

O SIM vence em todos os Círculos eleitorais, mesmo na Crimeia tem mais de 54% dos votos em ambos, e no restante País tem sempre mais de 83% dos votos! A legitimidade da Independência num Referendo livre e democrático ficou amplamente expressa.

 

2. O Memorando de Budapeste Com a Independência, a Ucrânia torna-se a terceira maior potência nuclear do planeta. Outras duas ex-Repúblicas Soviéticas, a Bielorússia e o Cazaquistão, dispõem também de arsenal nuclear. Receosos dessa dispersão de mísseis e ogivas, os Estados Unidos e a Rússia buscam através de garantias de segurança e compensações financeiras a sua transferência total para a Rússia. 

O acordo é assinado em Budapeste, a 5 de Dezembro de 1994, por Bill Clinton em nome dos Estados Unidos, Boris Yeltsin pela Rússia, John Major pelo Reino Unido e Leonid Kravtchuk, o primeiro Presidente da Ucrânia. A França e a China assinam declarações paralelas, de teor semelhante.

A Ucrânia compromete-se a aderir ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, o que fez e cumpriu até hoje. Note-se que já então a Rússia se recusou a que fosse um Tratado, furtando-se às suas implicações jurídicas, prova da má fé que já nessa altura demonstrava. 

Verifiquemos as principais garantias que a Ucrânia recebeu expressamente em troca do despojar do seu arsenal nuclear:

* Reconhecimento da soberania e independência da Ucrania com as fronteiras então existentes (ou seja com a Crimeia e o Donbass);

* Abstenção de ameaças ou uso da força contra si;

* Abstenção do uso de pressão económica para influenciar a sua política.

A invasão russa traduz, obviamente, uma flagrante violação do compromisso que a Rússia assumiu. Questionado já depois do início da Guerra sobre essa atitude, Putin respondeu com o ar seráfico com que mente descaradamente: “Não foi com esta Ucrânia que a Rússia assinou esse Memorando”! Eis o que vale a palavra da Rússia!

3. A Cimeira de Bucareste da NATO De 2 a 4 de Abril de 2008 teve lugar em Bucareste, capital da Roménia, a 20 Cimeira da NATO. Na agenda um ponto controverso: a adesão da Geórgia e da Ucrânia à NATO. Apesar do apoio dos Estados Unidos e do seu Presidente, George W Bush, seis Estados-membros da organização opõem-se a esse alargamento. São eles os três do Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo), a Itália, a França e a Alemanha! 

São os seis membros fundadores da União Europeia quem veta a Ucrânia, numa Cimeira num tempo em que Putin era convidado a participar, tendo obviamente manifestado a sua discordância.

Verdade que, contrariamente ao sentimento maioritário pró-europeu da sociedade ucraniana, a adesão à NATO era então muito mais divisiva. E para influenciar a Cimeira, as forças comunistas na Ucrânia organizaram manifestaçōes anti-adesão nos dias que antecederam a reunião de Bucareste.

Retrospetivamente, e olhando agora para a sua realidade económica e militar em 2008, sabemos que a Rússia não poderia ter feito nada para reverter a adesão da Ucrânia se tivesse sido essa a decisão. A Velha Europa voltou a falhar!

 

4. A Revolução de Maidan de 2014 O assassinato do Arquiduque Franz Ferdinand a 28 de Junho de 1914, em Sarajevo, é considerado como o ponto de partida para a I Guerra Mundial. Para a Guerra da Ucrânia, se temos que definir uma data, será o 29 de Novembro de 2013, e a Cimeira de Vilnius sobre a Parceria Oriental.

Um ponto dominava a agenda: a assinatura do Acordo de Associação e de Livre Comércio da União Europeia com a Ucrânia. O culminar de longos anos de negociações entre as partes. Para a grande maioria da população ucraniana, o primeiro passo concreto para uma tão almejada futura adesão. 

Nos dias anteriores, o Presidente Viktor Yanukovych é chamado a Moscovo. Chega à Lituânia com a sua decisão tomada e para tentar um último bluff. Em Vilnius anuncia que não vai assinar o Tratado. A União Europeia ainda tentou oferecer maiores apoios, mas hoje sabe-se que Yanukovych só queria aumentar a oferta russa, que não se destinaria apenas à Ucrânia… Por que o fez só ele saberá, mas hoje continua a viver faustosamente na Rússia, com a promessa de voltar a ser um dia um Presidente fantoche do Kremlin.

Kiev e a maioria do país mergulham numa frustração profunda e num desespero inimaginável. Uma sensação de morrer na praia, vítima de traição inqualificável e injustificável! O que se seguiu é conhecido, com a Revolta de Maidan, os mais de 100 mortos às ordens de Yanukovych, a sua cobarde fuga de helicóptero a coberto da noite a 22 de Fevereiro de 2014, a anexação da Crimeia e os mais de 14 mil mortes na insurreiçao no Donbass até à invasão de 2022.

 

5. Os Fracassados Acordos de Minsk Fortemente armados pelo Kremlin, e com um impressionante apoio terrestre e aéreo de forças armadas russas, os separatistas pró-russos dos dois Oblasts do Donbass conseguem ocupar parte importante do território ucraniano. Putin nega à comunidade internacional que as suas tropas tenham entrado no país vizinho. E mais, diz: “Se entraram na Ucrânia é porque se perderam, foi sem querer”! Sem comentários…

Uma situação militar precária leva a OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação Europeia) a organizar em Minsk encontros entre Putin e o novo Presidente Petro Poroshenko, com a mediação do Presidente francês, François Hollande, e a chanceler alemã, Angela Merkel. O Presidente Aleksandr Lukashenko é o anfitrião. O Acordo, essencialmente de cessar-fogo, não é sequer assinado pelos dois Presidentes. Leonid Kuchma, segundo Presidente da Ucrânia assina por esta, e para desvalorizar mais o documento, é o embaixador russo em Kiev, Mikhail Zurabov, quem assina pela Rússia. 

Poucos Acordos internacionais terão tido um substrato tão cínico e tanta má-fé. Oito anos depois, quer Merkel, quer Poroshenko afirmam que apenas pretenderam um cessar-fogo e dar tempo à Ucrânia para se preparar e reequipar militarmente para uma guerra inevitável. 

Se a pretensão era esta, mais se lamenta que o Ocidente não tenha investido desde então nesse reequipamento. 

 

6. A Revisão Constitucional Russa de 2020 A 1 de Julho de 2020, um referendo concluiu um processo de revisão constitucional na Rússia. Essencialmente, a opinião pública internacional focou-se no fato de as emendas colocarem novamente a zero a contagem do tempo em que Putin pode manter-se como Presidente. Mas outra emenda deveria ter suscitado a nossa atenção: ficou constitucionalmente interdito que a Rússia possa ceder a um Estado terceiro qualquer território que tenha sido declarado como russo. Pretenderam assim escudar-se na Constituição para que em qualquer negociação futura, não fosse permitido reverter situações de anexações! No caso da Ucrânia, afeta a Crimeia, anexada em 2014, e, desde 30 de Setembro do ano passado, as Repúblicas de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia. 

Outra emenda curiosa, pelo seu desplante, é a que consagra que podem concorrer a Presidente da República os cidadãos nascidos na Rússia, ou em territórios entretanto absorvidos. Sim, literalmente “absorvidos”!

Enquanto o Kremlin mentia ao mundo, há muito que a invasão vinha sendo preparada, em todas as suas diversas vertentes.

 

E agora? Recordámos algumas situações que ilustram bem várias realidades:

*Por um egoísta interesse nacional, por inaceitável ingenuidade ou incompetência ou apenas por intolerável cobardia, foram muitas as vezes em que o Ocidente faltou ou desiludiu a Ucrânia;

*Com todos os seus problemas e defeitos, de que destacamos um sistema político e económico baseado em larga corrupção e uma dezena de oligarcas, que no fimda guerra terão que ser radicalmente banidos, a Ucrânia ganhou o nosso respeito e estima;

*Putin, em qualquer circunstância, fruto da sua escola enquanto Coronel do KGB, não é um interlocutor minimamente fiável.

Por tudo isto, o mundo livre e democrático tem uma enorme dívida de gratidão para com o martirizado povo ucrâniano, que justifica o esforço de assistência militar, humanitária e económica que está sendo prestado.

 

Duas notas finais:

* O chamado Ocidente tem, duma vez por todas, que ceder à Ucrânia os meios em equipamento militar, de inteligência, de guerra cibernética, de que ela necessita para defender a sua soberania e independência. Não pode continuar a protelar indefinidamente decisões urgentes. Passar dias, semanas, meses, a discutir na praça pública se fornece ou não o equipamento X, e a sucessão de decisões é sempre “não, não, não, não, não,…sim!” Com grande atraso, com mais sofrimento que se poderia ter evitado. 

 

* Qualquer guerra é um flagelo humanitário e social. Cada dia representa mais tristeza, mais mortes, mais sangue derramado, mais destruição, gerações sem futuro. Mas temos que ter a consciência que NÃO podemos ceder nos nossos valores, em especial na liberdade! Temos que lutar contra as Forças do Mal. E todos temos a obrigação de buscar, quanto antes, uma solução para este conflito. Temos que combater agora para dar uma oportunidade à PAZ!