O insustentável peso da derrota

Tom Molineux poderia ter sido uma personagem da ópera de Gershwin Porgy and Bess – ganhou a liberdade a punhos

Thomas Molineaux tinha tudo para ser uma personagem da ópera Porgy and Bess de George Gershwin. Basta olhar para a sua figura e imaginá-lo nos campos de algodão cantando com a dolência dolorosa do escravos: «Summertime, and the livin’ is easy/Fish are jumpin’ and the cotton is high/Oh, your daddy’s rich and your ma is good lookin’/So hush, little baby, don’t you cry». Não sei se a mãe dele tinha bom aspeto, mas estou certo de que o pai de rico não tinha nada nem quis saber dele, e por isso Tom nasceu numa aldeia de escravos junto a uma plantação de algodão do Estado de Virgínia, no dia 23 de Março de 1874, não existindo grandes pormenores conhecidos da sua infância tirando o de se chamar Molineux por causa do dono da plantação, ou seja, seu dono também.
Os donos das plantações de algodão no início de 1800 não eram propriamente gente recomendável. Viviam naquelas casas grandes cujo estilo é conhecido por antebellum, falavam com um sotaque de fazer criar borborigmos no estômago de um boi, e tratavam gente de pele negra (tom normal portanto) abaixo de cão. Dentro daquelas cabeças demasiado ocas pôr escravos a combater a mãos nuas até que um deles tombasse inanimado ou mesmo morto parecia uma invenção tão divertida quanto brilhante. Charleston, onde Porgy e Bess encontraram algum conforto na sua vida desgraçada, no bairro de Catfish Row, não fica na Virgínia e sim na Carolina do Sul, mas há que dizer que em termos de racismo e segregação não havia estado sulista que levasse a palma aos outros.
«One of these mornings you’re gonna rise up singing/Yes you’ll spread your wings and you’ll take to the sky». De certa forma foi o que aconteceu a Tom quando começou a ganhar combates de boxe para gáudio daqueles que sentiam um gozo especial em ver um dos seus escravos dar cabo do canastro a um dos escravos do vizinho mais próximo enquanto fumavam charutos e soltavam roncos de desespero o gargalhadas alarves de alegria espúria. 
Tom era enorme. Um fulano carregado de músculos e de energia. Além disso era rápido, muito rápido. De cada vez que desferia um murro em cheio na cara do opositor causava estragos de monta. Os patrões começaram a gostar de Tom Molineux e da sua arte de ser invencível. Vários tentaram comprá-lo a Mr. Molineux mas este, num gesto magnânimo muito pouco coincidente com a sua personalidade mais própria de uma besta de 128 patas, declarou que iria levar tom para cima de um ringue, perante fosse que adversário fosse: se Tom perdesse, passaria a ser propriedade do dono do seu opositor; se Tom ganhasse receberia 500 dólares e uma carta de alforria. Pelo caminho, Mr. Molineux desafiou os ricaços da Virgínia e apostou cem mil dólares em Tom.

Tom Molineux lutou pela sua liberdade a punhos nus e conquistou-a. Com o dinheiro no bolso, viajou para Nova Iorque onde aceitou um emprego como empregado do antigo embaixador dos Estados Unidos em Londres, William Pinkney, continuou a combater agora mais por gosto do que por outra coisa qualquer, e havia quem o tratasse por Campeão de Toda a América.

Mr. Pinkney estava muitos furos acima de Mr. Molineux em questão de caráter. Com a sua influência enviou Tom para Londres em 1809 para ser devidamente treinado por um especialista, Bill Richmond, e não tardou a tornar-se numa figura conhecida cujo nome andava de boca em boca por ter batido com facilidade grandes pugilistas britânicos como Jack Burrows e Tom Blake. Inevitavelmente acabou por se encontrar frente a frente com o campeão britânico de pesos pesados Tom Crib. No dia 3 de dezembro de 1810, no Shenington Hollow em Oxfordshire, Tom lutou até à exaustão durante 39 assaltos. Pierce Egan, o grande crítico de boxe da época, escreveu: «The Tremendous Man of Colour, Molineaux, proved himself as courageous a man as ever an adversary contended with. H astonished everyone, not only by his extraordinary power of hitting and his gigantic strength, but also by his acquaintance with the science». Belas e merecidas palavras, masTom Molineux sentiu demasiado a derrota. Saiu do ringue fisicamente esgotado mas, pior ainda, psicologicamente afetado. Deixara de ser invencível e isso magoou-o de tal ordem que abalou com as traves mestras da sua estrutura mental. Voltou a defrontar Crib em setembro do ano seguinte mas já era apenas uma sombra do Tremendo Homem de Cor e tombou ao fim de 11 assaltos. Deixou de acreditar em si próprio e refugiou-se no consolo tão misericordioso como mentiroso do álcool. Desapareceu para reaparecer num asilo em Galway, na Irlanda. Tresandava a whisky barato. Parecia um menino perdido. «So hush, little baby, baby don’t you cry…».
afonso.melo@newsplex.pt