O Padrinho. Ainda hei-de ir um dia a Corleone…

Pequenina cidade nos arrabaldes de Palermo, na Sicília, viu nascerem grandes nomes da história da Máfia. Deu nome ao personagem de Mario Puzo que Francis Ford Coppola levou para o cinema. Mas existiu mesmo? Ou foi inspirado no primeiro mafioso de Nova Iorque, Giuseppe Morello?

Não, não fui a Corleone. Estive lá perto mas não fui, não me recordo bem porquê e o porquê aqui também pouco importa e olho sempre para diante deixando a promessa que hei-de ir um dia a Corleone. Quem atirou com Corleone para a boca do povo foi Mario Gianluigi Puzo, nascido em Manhattan em 1920, filho de uma família de italianos que vivia em Hell’s Kitchen, o bairro dos restaurantes de Nova Iorque, e que em 1965 recebeu um adiantamento de mil dólares para escrever um livro sobre um tema que conhecia bem graças à sua profissão de repórter, repórter intrépido que não se escusava a meter-se pelos sinistros labirintos dos negócios da Cosa Nostra. Nasceu The Godfather, para nós O Padrinho, que no cinema acabou por ter duas sequelas após a realização formidável de Francis Ford Coppola em 1972. 

Poucos filmes terão tido o impacto universal de O Padrinho. Uma lista incrível de actores do topo dos topos: Marlon Brando, Robert de Niro, Al Pacino, James Caan, Richard Castellano, Robert Duvall, Sterling Hayden, John Marley, Richard Conte e Diane Keaton. Poucas frases serão tão emblemáticas e sinistras como a proferida por Don Vito Corleone, representado em novo por Robert de Niro e em velho por Marlon Brando: «I’m going to make an offer that you can’t refuse…» Mas, vendo bem, não é preocupante, não se trata de nada pessoal, são só negócios, não é? Diz a lenda que, depois de ter experimentado vários timbres daquela voz arrastada, Brando surgiu nas filmagens com um bocado de algodão de cada lado da boca para aumentar as bochechas tão descaídas quanto inconfundíveis. O cinema é mesmo assim. E, na maior parte das vezes, imita a realidade. Corleone em siciliano é Cunigghiuni e fica nos arredores de Palermo. Estive em Palermo e não em Cunigghiuni e a única desculpa que tenho para ter falhado a segunda foi porque passei por Palermo à pressa no caminho para oriente. Corleone sempre foi um local em que a Máfia se sentiu bem. No meio de 11 mil habitantes nasceram capi a torto e a direito: Tommy Gagliano, Gaetano Reina, Jack Dragna, Giuseppe Morello, Michele Navarra, Luciano Leggio, Leoluca Bagarella, Salvatore Riina e Bernardo Provenzano. Assim de repente faz pôr a hipótese de merecer um museu de cera com toda esta gente. Cada um destes nomes equivale a centenas de cadáveres. Mas, como já sabemos de cor, «it’s only business…».

Desde a pré-história que há gente a viver em Corleone. Contam os livros de História que a civilização a sério dessa zona da Sicília, uma ilha telúrica como poucas, apareceu com os gregos que fundaram uma cidade chamada Kouroullounè. Depois os árabes que criaram o Sultanato da Sicília corromperam o nome – Qurlayun. Em seguida latinizou-se: Curilionum. Ergue-se por entre montes de vegetação rasteira e pode não ter o museu de cera com as figuras de todos os mais famosos mafiosos de sempre mas tem, desde o ano 2000, outro bem mais importante, o Centro Internazionale di Documentazione sulla Mafia e del Movimento Antimafia. Vito, o rapaz que emigrou para a América e para Nova Iorque, só assumiu o apelido de Corleone do lado de lá do Atlântico. Pelo caminho limitou-se a ser Vito Andolini, ou pelo menos assim o decidiu Mario Puzo e depois filmou Coppola quando o jovem chega ao centro de emigração de Ellis Island sem saber uma palavra de inglês e sem entender que lhe perguntavam o nome: o funcionário não esteve para perder tempo e atribuiu-lhe o local de nascimento no lugar onde deveria aparecer o nome de família. Mas para darmos com esta cena já temos de ir mais adiante, ao Padrinho II, já com Al Pacino como protagonista, Michael Corleone, isto é Alfredo James Pacino, filho de Rose Gerardi e Salvatore Pacino, também nascido em Manhattan e cujos avós maternos eram naturais de Corleone. Mais a propósito não podia vir a calhar.

D. Vito e o outro D. Vito
D. Vito Corleone pode ter sido personagem de livros e filmes e, embora não faltassem em Corleone mafiosos competentes para servirem de inspiração para os autores e para os actores, é difícil perceber até que ponto existiu na realidade, tal como uma extensa reportagem levada a cabo pelo jornal espanhol La Vanguardia veio a tentar comprovar investigando as famílias locais. As suspeitas conduziram não a um autêntico Vito Andolini (ou Corleone) mas àquele que terá sido o precursor de todos os mafiosos corleoneses nos Estados Unidos, um tal de Giuseppe Morello que tinha a alcunha de Mano de Garra.

Conta então o La Vanguardia que Giuseppe Morello, nascido em 1867 e morto em 1939, era conhecido por toda a gente como Don Petru e ganhou a tal alcunha de Mano di Garra por ter dois dedos, o indicador e o anelar da mão direita, inutilizados dando-lhe à mão uma aparência de garra. Ai, no entanto, de quem resolvesse tratá-lo assim frente a frente. Não era de apostar grande coisa nem no seu futuro nem no futuro da sua família. «Famiglia»: eis uma palavra que diz muito aos mafiosos. Reparem em Don Vito/Brando e a despeito da sua falta de escrúpulos na forma como é visto como homem honrado e com alguns princípios por poucos que fossem. Nesse aspeto distinguiu-se bem do seu filho Michael que não respeitava nem cunhadas nem sobrinhos nem irmãos.

Don Petru não foi verdadeiramente um galã de cinema. Roubava gado, era um falsificador e teve de fugir da ilha para não ir parar com os costados num tribunal por uma ninharia, segundo ele, por ter eliminado um guarda florestal. Ouviu amigos, escutou conselhos e em 1892 chegou aos Estados Unidos para ser, todos pensavam isso menos ele, mais um dos milhares de italianos que demandavam Nova Iorque para trabalharem nos mercados, nas docas e, se conseguissem um empréstimo, abrirem um dos incontáveis restaurantes italianos de NY, nem sempre muito asseados mas de onde julgam que veio o nome de Hell’s Kitchen? Em 1900 já Mano di Garra estava em Nova Iorque como em Corleone. Isto é, tomou conta do lugar e tratou de reunir à sua volta uma famiglia suficientemente intimidante para ser o Capo di Tutti Capi da cidade. Toda a gente tinha um medo-pânico do homenzito de bigodes esfarelados que governava a totalidade do contrabando de tabaco e bebidas alcoólicas de A Grande Maçã berrando ordens do seu apartamento em Little Italy. Ao contrário do que sempre acontecera até aí, a famiglia de Giuseppe não era comandada à distância, desde a Sicília, como a todas as famiglias nova-iorquinas até então. Foi isto que o tornou um homem tão especial e merecedor de uma reverência doentia por parte de toda a gente.

Adiantemos as folhinhas do calendário três anos. Don Petru tem às suas ordens mais de 30 paisanos, na sua grande maioria fugidos à justiça italiana. Muitos tinham vindo de Corleone, outros de aldeias vizinhas como Carini, Villabate e Lercara Friddi. O que significava uma garantia importantíssima: nenhum se atrevia a abrir a boca fosse para o que fosse. Quem não respeitasse a lei do silêncio, a omertá, tinha na Sicília muitos parentes que sofreriam as consequências no imediato. Aquele grupo de italianos que se defendiam uns aos outros como se nas suas veias corresse o mesmo sangue tornou Nova Iorque numa cidade digna do faroeste. A lei ficava a Oeste de Pecos. Até que um napolitano imigrado, Joseph Petrosino, passou a comandar um departamento de polícia especial, dedicado apenas aos crimes cometidos pela Máfia. Petrosino não nascera em Corleone como Giuseppe mas era tão difícil de assoar como o novo rei do crime. Os seus métodos muitas vezes ultrapassavam as margens da lei que jurara respeitar. Estava-se nas tintas. Para parar Don Petru era preciso ser um animal à sua altura. Numa daquelas frases foleiras dos livrinhos de caubóis poderia ler-se sobre ele: «Pagou com a vida o seu afã de limpar as ruas de Nova Iorque!».

Verdadeira literatura essa! Precisávamos de mais do mesmo calibre nos dias de hoje, ainda por cima quando nos referimos a bandidos a sério e não a simples pilha-galinhas.

Ascensão e queda
Em 1908 já Mano di Garra destruíra por completo as fronteiras sociais de Nova Iorque. A cidade era dele e ponto final. Final mesmo final não porque ainda tenho mais umas linhas para escrever a propósito do animal. Se no início fora obrigado a expor-se demasiado através da lucrativa atividade de falsificador de notas de dólar, agora tinha quem fizesse esse trabalho sujo por ele. Os seus cofres não paravam de se encher por um lado e de se esvaziar por outro graças a uma teia de corrupção que atingia os governadores da cidade. Infelizmente para Don Petru, o incorruptível Borsalino estava na sua peugada. Mas eis que a Polícia Municipal de Nova Iorque comete um erro fatal: confiantes que seria na Sicília que iriam encontrar testemunhas acusatórias contra Giuseppe enviaram para a ilha um grupo de investigadores naturalmente comandados por Petrosino. Foi uma sentença de morte. O inspetor desembarcou em Palermo, cheirou o odor da malvasia e sentiu-se em casa. Criou amizades, confraternizou em festarolas, tornou-se num alvo demasiado fácil e dois assassinos contratados por Giuseppe crivaram-no de balas no dia 12 de Março de 1909. Era impossível não se sentir à distância o sorriso velhaco do Mano di Garra. Vira-se livre do homem que esteve verdadeiramente perto de o apanhar. E preparou-se para viver livre como nunca até aí.

A tarefa de Joseph Petrosino passou para as mãos de um americano com tão pouca piedade como o seu antecessor: William Flynn. Foi ele que conseguiu penetrar na brecha da famiglia de Don Petru como nunca ninguém pensara ser possível. Arranjou um bufo. Mas um bom bufo. Nenhum daqueles que se deixa matar na véspera do julgamento nem aparece enforcado na cela com as calças urinadas de medo e do aperto no pescoço. Morello pode ter tido a certeza absoluta de que nada daquilo iria suceder ao longo da sua existência, mas o facto é que ouviu da voz de um juiz respeitável que fora condenado a 30 anos de trabalhos forçados. Valeu-lhe ainda um resto da antiga opulência para que lhe concedessem a clemência de sair em liberdade condicional no dia 1 de Fevereiro de 1920. Olhou em redor e percebeu que se encontrava sozinho. Os seus velhos camaradas estavam mortos ou presos ou pura e simplesmente tinham passado a trabalhar para mafiosos da nova geração. Usou o resto da raiva e do ressentimento que lhe restava para convencer outro dos aterrorizantes bandidos de New Italy, Giuseppe Masseria, Joe the Boss, para tomar o lugar de seu braço direito. Mas Giuseppe estava definitivamente desatualizado. Quem ocupara o seu lugar durante os anos de prisão não iria devolvê-lo por dá cá aquela palha. A guerra explodiu. Sim, isso mesmo, a Guerra Civil Siciliana disputada nos bairros de Nova Iorque corleonesi (de Corleone, pois claro) e os castellammaresi (um grupo de Castellammare del Golfo que crescera desmedidamente nos tempos mais recentes). Don Vito Corleone teve a morte mais cinematográfica de sempre, brincando com o neto por entre vinhedos com vaporizador contra o míldio na mão e o coração a traí-lo na altura mais pacífica da sua vida. Mas isso é como nos filmes, mesmo naqueles filmes que são perfeitas obras de arte como o de Francis Ford Coppola. Don Petru não teve a mesma sorte. No dia 15 de Agosto de 1930 foi apanhado sem proteção por dois sicários castellamaresi e percebeu rapidamente o que iria acontecer. Tombou crivado de balas. Balas como as que não conseguiram assassinar Vito Corleone mas que o fizeram ansiar ser Capo di Tutti Cappi à custa da mortandade coletiva dos chefes de todas as famiglias. Joe the Boss teve o mesmo destino cerca de uma semana mais tarde. A força dos Corleone chegara ao fim em Nova Iorque. Outras famiglias tomaram o comando dos seus negócios ilícitos. Don Vito/Brando não deixou, apesar dos seus crimes, de concitar a simpatia dos leitores e dos espectadores. Quem diria, não é? Don Petru era um parasita ordinário que decidia sobre a morte de mulheres e crianças sem pestanejar. Diziam que tinha os olhos raiados de sangue. Quando ouviu a sentença do juiz, desmaiou na sala de audiências. Resumiu-se a um cobarde. Cheirava mal.