A escassez de medicamentos não é novidade, mas preocupa cada vez mais os doentes e seus familiares. É o caso de Marta Lino, de 37 anos, que sofre de síndrome de Cushing e necessita do Ozempic (Semaglutido). Por este estar esgotado a nível nacional, viu ser-lhe prescrito o Trulicity (Dulaglutido). A ser seguida em Endocrinologia no Hospital de S. João, no Porto, por aquela que designa como «a melhor equipa», a mulher foi submetida a uma cirurgia à hipófise e foi-lhe removido um tumor de 4mm. Após essa cirurgia, foi-lhe prescrito o Ozempic, em fevereiro de 2022, mas, em junho, o fármaco já não estava disponível. Por isso, foi-lhe receitada uma alternativa. Em setembro, parou de fazer esta medicação porque foi novamente operada, mas voltou a tomá-la em janeiro. Contudo, não esconde que prefere o Ozempic, porque o Trulicity é «muito violento» naquilo que concerne a administração.
«O manuseamento é muito mais difícil. Enquanto a ‘caneta’ do Ozempic é mais pequena e discreta, sendo que é de mais fácil administração, tenho de rodar esta e, quando a coloco na barriga, tenho de fazer mais força e ouve-se um barulho. No meu caso, incomoda-me um bocado», explica. «Em termos de resultados, se calhar não sou um bom exemplo, por assim dizer, porque devido à síndrome de Cushing não há muito que se possa fazer. O impacto do medicamento é mais de manutenção do peso e não de perda», sublinha, adiantando que aquilo que a incomoda é saber que existem pessoas diabéticas que estão sem acesso ao Ozempic. «Alguns dos novos fármacos são, de facto, fantásticos. Fico entusiasmado porque controlam significativamente a glicemia, reduzem o risco do coração e do rim e fazem perder peso como nunca se viu. Estou convencido de que muitas das cirurgias da obesidade poderão ser destronadas nos próximos anos», indicou, em entrevista ao Nascer do SOL, João Jácome de Castro, médico endocrinologista que dirige há dois anos a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM), referindo-se a medicamentos como o Ozempic e o Trulicity, que se encontram frequentemente em rutura.
Outro medicamento que, muitas vezes, não se encontra nas farmácias portuguesas é o Inderal. «Não o tomei durante um tempo. Aproveitei que tinha uma viagem a Espanha para comprá-lo, sem receita, porque o tomo para prevenir as enxaquecas. Nesse período acabei por estar um pouco mais suscetível», conta Sofia Fernandes, de 26 anos. «O meu médico não sugeriu nenhuma alternativa. Mesmo agora, tomo 1 Inderal por dia à noite, a dose mínima. É suposto tomar 2 de manhã e 1 à noite», constata. «Quando estes acabarem, não terei mais. É melhor tomar um do que não tomar de todo porque me ajuda ainda que o Inderal não consiga prevenir todas as crises», diz. «Para ser franca, sinto-me um pouco revoltada. Ainda por cima, só agora estamos a desmistificar e normalizar as enxaquecas. Então, as pessoas não entendem o impacto de uma crise e o impacto que uma coisa tão pequena como o Inderal pode ter. Não estou a dizer que cura todas as crises, mas se prevenir duas de cinco… Já melhora a minha vida», afirma. «É triste verificar que não há uma resposta clara», adianta a jovem que sofre desta doença desde 2014.
Por outro lado, há quem se queixe da falta do ansiolítico Rivotril. «Usava-o para dormir porque é menos ‘tóxico’ do que muitos ansiolíticos, mas também é usado para controlar certos distúrbios do sono e epilepsia. Ainda ontem tive sete pessoas a enviarem email, desesperadas, a dizer que não têm Rivotril. Se pararmos de repente entramos em abstinência potencialmente fatal e as alternativas não são boas», aponta Pedro (nome fictício), interno de formação específica de 25 anos. «Atualmente, estou a deixar esse tipo de medicação e, por isso, prescreveram-me outra. Mas há muitos doentes mal por causa da falta do Rivotril».
Importa recordar que o Comité de Ministros do Conselho Europeu adotou, a 1 de fevereiro, uma Recomendação para promover, nos 46 Estados-membros, o acesso equitativo a medicamentos e equipamentos médicos em situação de escassez e salvaguardar os direitos fundamentais das pessoas que deles necessitem para condições de saúde graves ou que se encontrem em risco de vida. Elaborada pelo Comité Gestor de Direitos Humanos nas Áreas de Biomedicina e Saúde (CDBIO) em resposta à pandemia de covid-19 e à escassez de medicamentos e equipamentos médicos gerada pela crise sanitária, a Recomendação «estabelece direitos humanos gerais e princípios processuais para garantir, entre outros, a ausência de discriminação, por meio, por exemplo, da priorização com base em critérios médicos e do cumprimento dos princípios de responsabilidade, transparência e inclusão».
Por outro lado, como é possível ler em comunicado, «recomenda ainda assegurar a existência de um sistema de prevenção e mitigação de situações de escassez e de melhor preparação para a mesma», sendo que se aplica «ao acesso a medicamentos e equipamentos médicos certificados através de processo regulamentar adequado previsto na lei, necessários a doentes com problemas de saúde graves ou em risco de vida». Como refere o Comité de Ministros, o princípio do acesso equitativo aos cuidados de saúde mantém-se válido em situação de escassez de medicamentos e equipamentos médicos, tanto em situação de urgência como na prática clínica de rotina, seja qual for a causa da escassez. «As causas da escassez são multifatoriais, incluindo a falta de matéria-prima, problemas na fabricação, controle de qualidade e logística, bem como mudanças nas exigências regulatórias. Eventos imprevisíveis, como surtos epidemiológicos, conflitos armados e emergências causadas por mudanças climáticas, podem aumentar significativamente a procura e reduzir a capacidade de garantir a disponibilidade», é realçado, sendo adiantado que mais informações podem ser consultadas no Plano de Ação Estratégico sobre Direitos Humanos e Tecnologias em Biomedicina (2020-2025).