Os velhos hábitos que se tornam novos

Joana e Daniela eram e são apaixonadas por jogos de tabuleiro e de cartas, enquanto Jorge e Diogo lembram os tempos áureos da televisão e dos gira-discos. Anabela e Sandra falam da magia de escrever cartas. Marta não passa um dia sem ler. Gonçalo e Beatriz não perdem uma oportunidade para revelar fotografias.

Colocava-se o tabuleiro sobre uma mesa «bastante grande», pondo-se as cartas de Sorte e Caixa da Comunidade «nos locais indicados no tabuleiro». De seguida, cada jogador recebia uma marca que o representava durante o jogo. Cada um recebia, também, 15 mil escudos. «O resto das notas passavam para o Banco, que possui igualmente os Títulos de Propriedade». Escolhia-se um dos jogadores para Banqueiro e a cada jogador era entregue uma nota de 5 mil escudos, quatro notas de mil escudos, seis notas de 500 escudos, cinco notas de 200 escudos, 15 notas de 100 escudos, nove notas de 50 escudos e cinco notas de 10 escudos. Recorda-se destas regras? São as regras da primeira edição do Monopólio, considerado «o jogo de finanças mais famoso do mundo».

Quem se lembra bem das mesmas é Joana Oliveira, de 58 anos, professora de Matemática natural de Lisboa. «Tenho três irmãos mais velhos e passávamos muito tempo a jogar. Mesmo durante a semana, depois das aulas, pegávamos no tabuleiro e lá estávamos nós a ver quem era o mais rico! Tínhamos discussões porque eu queria ‘ser’ sempre o carro e eles ficavam zangados», narra, rindo-se. «Quando algum ficava com o dedal… Era uma risota! Tenho muitas saudades desses tempos. Hoje, cada um tem a sua vida e já não temos tempo nem paciência para nos sentarmos a jogar… Que saudades!», exclama, indo ao encontro da perspetiva de Daniela Abreu, de 25 anos, que trabalha na comunicação interna da Tranquilidade e ainda hoje adora jogos de tabuleiro e de cartas.

«Depende muito dos contextos, mas os mais comuns… Diria que são Trivial Pursuit, Ekipas e, às vezes, Monopólio. Ainda ontem joguei um que não é de tabuleiro, mas implica na mesma sentar um bom grupo de amigos à volta de uma mesa. Chama-se Speed Jungle», explica. «Conforme a ocasião também surge um jogo de mímica ou palavras proibidas. Assim como de cartas e Uno, de vez em quando», afirma a jovem.

Aproximadamente 90% dos portugueses diz ver televisão todos os dias, sendo que esta é uma das conclusões do Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses em 2020, realizado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, lançado em fevereiro de 2022. Este estudo revelou igualmente que a faixa da população mais exposta à televisão corresponde à dos idosos. Por outro lado, o peso dos espectadores diários aumenta com a idade – 98% de se iores e 73% nos jovens entre os 15-24 anos –, mas diminui com a escolaridade – atingindo o pico entre os portugueses que têm menos do que o 3.º ciclo (95%) quando comparados com 84% dos participantes que completaram o ensino superior. Existem também mais mulheres (92%) a ver televisão diariamente do que homens (87%).

Importa também dizer que os inquiridos mais idosos e/ou com rendimentos mais reduzidos contrastam com os mais jovens (18-34) e/ou de rendimentos mais elevados, que estão menos tempo em frente ao ecrã. Relativamente às camadas mais jovens, o estudo realçou que esta faixa prefere o consumo de formas audiovisuais que não tenham conteúdos pré-definidos, como é caso da televisão, preferindo outras plataformas digitais.

Assim, os jovens, com idades compreendidas entre os 15 e os 24 anos, passam, em média, duas horas a ver televisão. Quando analisamos a população com mais de 65 anos, esse tempo passa para o dobro. Todos os inquiridos revelam que veem mais televisão no decorrer dos fins de semana do que nos dias úteis e, portanto, o valor médio de tempo à frente de um televisor durante um dia de semana fica acima das quatro horas entre aqueles que não usam regularmente a internet.

Jorge Silva, de 47 anos, professor de Educação Física, de Sintra, recorda com nostalgia os fins de semana em que se sentava no sofá com a irmã, dois anos mais nova, e viam desenhos animados juntos. «É claro que também os víamos durante a semana, mas quando não tínhamos aulas era diferente. Os nossos pais não nos ‘chateavam’, estávamos à vontade e, se tivéssemos sorte… Ainda comíamos umas guloseimas!», diz o engenheiro informático do Porto. «Não há nada como as coisas antigas. Têm outra magia. É por isso que, mesmo com as novas tecnologias, tento que os meus filhos vejam sempre televisão tal como eu via com a minha irmã».

Mais novo, mas igualmente saudoso dos velhos hábitos está Diogo Pires, de Coimbra, que aos 36 anos coleciona televisões antigas porque não consegue – nem quer – esquecer a infância. «Como é que posso deixar para trás os dias em que chegava da escola e me sentava no sofá ou no chão da sala a ver desenhos animados?Chego a ter saudades de ver o telejornal com os meus pais e irmãos!», confessa o enfermeiro. «Sinto falta, principalmente, de ver os episódios do Doraemon. Sempre que tenho um tempinho livre, volto a eles», partilha, sendo que outra paixão que nutre é pelos gira-discos. «Queen, Rolling Stones, Whitesnake… Tenho, praticamente, os vinis todos destas bandas», admite.

De Coimbra até Oeiras, passamos de Diogo para Anabela Santos, de 54 anos, doméstica, que tem o hábito de escrever cartas, como aquela que nos mostrou primeiro. Com quase 35 anos e numa folha com passarinhos azuis sentados num grande coração vermelho, com a inscrição ‘Amar é… ter tempo para o Amor’ lê-se: «5 de maio de 1988. Meu querido esposo: de manhãzinha, assim que acordo, vejo nos raios de sol o teu rosto brilhar, os teus lábios sorrirem. No céu azul vejo a pureza do teu coração e a beleza das tuas mãos. Sempre que oiço o doce chilrear dum passarinho sei que ele canta a melodia do nosso amor. Mas, quando chove, e oiço os trovões, sei que eles gritam a força inabalável da nossa união. Nas gotinhas de chuva no meu rosto sinto toda a ternura das tuas carícias. Meu amor, tu és uma maravilha de Deus! Eu amo-te muito. Espero estar a fazer-te, agora, muito feliz! Obrigada, Jesus, porque tu continuas a abençoar-nos. Da tua Belinha». «Para a minha esposa. Com 10 anos de amor. Júlio. Tu és: íntegra, meiga, afável, cumpridora, organizada, responsável, inteligente, bonita, educada, formosa e muito mais…», escrevia, à sua vez, o marido de Anabela num postal ilustrado com um vaso repleto de flores coloridas.

«Já me divorciei, mas gosto de voltar atrás e ler estas cartas. Comprávamos postais com cãezinhos, bonequinhos a passear de mãos dadas… Era tão bonito, pensávamos realmente na outra pessoa e escrevíamos com tanto cuidado!», declara. «Os meus filhos e o meu neto vivem no Algarve. Por isso, escrevo-lhes poemas ou textos e envio-lhes tudo. Sinto-me sempre bem quando me dizem que receberam as cartas e ficaram contentes. Não há nada como ler em papel: é diferente», frisa, adiantando que «tem outro significado, é mais especial do que as mensagens, os emails e afins».

Sandra Antunes, de 31 anos, natural de Guimarães mas a viver em Lisboa, nunca teve o hábito de escrever cartas, mas ganhou-o através da Slowly, uma aplicação que simula a troca de correspondência. «Criamos uma conta com um avatar e detalhes nossos como o nome ou alcunha, a idade, as línguas que falamos e uma pequena apresentação. Depois, é só começarmos a escrever e as cartas demoram, efetivamente, a chegar! Tenho conversado com pessoas incríveis de todas as partes do mundo», afirma a psicóloga. «Sinto que esta experiência está a ajudar-me a crescer enquanto ser humano, mas também como profissional da área da saúde. Troco opiniões e vivências com pessoas completamente diferentes: tem sido mesmo enriquecedor, aconselho a toda a gente! Experimentem: não se vão arrepender. Até podem ganhar selos e pô-los nas vossas cartas!», exclama.

«A aplicação foi desenvolvida em 2016, mas ganhou popularidade e utilizadores durante a pandemia. Isto porque milhões de pessoas presas em casa procuravam, claro, uma sensação de conectividade e algo que valesse a pena fazer enquanto viviam praticamente enclausurados. Vivemos sufocados, não nos esqueçamos disso, tínhamos muita falta de contacto humano», diz. «É muito giro porque podemos escolher interesses que tenhamos. Por exemplo, escolhi alguns como a Psicologia, a Poesia, a Literatura no geral, a Música e a Dança, e tenho falado com pessoas muito parecidas comigo!».

Os verbos escrever e ler são, habitualmente, associados. E estão associados na vida de Marta Gonçalves, finalista de Medicina de 24 anos que contraria a tendência do afastamento da leitura. É que, no ano passado, soube-se que mais de metade dos portugueses não lê livros. Esta realidade que está ligada à educação, pois muitos não têm memória de os pais alguma vez os terem levado a uma livraria ou lhes terem oferecido um livro. Estas são conclusões de um inquérito às práticas culturais dos portugueses, realizado nos últimos meses de 2020 pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, com financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), e apresentado em Lisboa.

Tratou-se da primeira vez que foi feito em Portugal «um amplo levantamento à escala nacional das práticas culturais dos portugueses em vários domínios da cultura», como destacou o administrador da FCG, Guilherme de Oliveira Martins, afirmando que este estudo nasceu precisamente da necessidade de conhecer esta realidade, da necessidade de ter um «ponto de partida». Foi constatado que nos últimos 12 meses anteriores ao inquérito, 61% dos portugueses não leram um único livro em papel, e, dos 39% que afirmavam ter lido, a maioria leu pouco.

De acordo com o estudo, o universo de quem leu é constituído, acima de tudo, por pequenos leitores (27%, que leram entre um e cinco livros impressos), seguidos de médios leitores (7%, que leram entre 6 e 20 livros) e grandes leitores (apenas 1% leu mais do que 20 livros num ano). Estes dados mostram uma descida nos hábitos de leitura em relação a 2007, segundo o ‘Inquérito à Leitura’ levado a cabo nesse ano, que registava uma percentagem de 55% de leitores de livros impressos.

Naquilo que diz respeito às idades, foi entre os mais novos que se encontraram maiores hábitos de leitura de livros impressos: 44% tinham entre 15 e 24 anos, 46% tinham entre os 25 e os 34 anos, 44% entre 35 e 44 anos, 33% andavam na casa dos 45-54 anos, 31% tinham de 55 a 64 anos, e 22% tinham 65 ou mais. Por outro lado, no que concerne as motivações de leitura, 68% dos inquiridos afirmam ler livros «por prazer», uma percentagem que cresce entre os mais idosos e os de mais reduzida instrução, já que «os que menos prazer retiram da leitura» (43%) são os jovens dos 15 aos 24 anos, isto é, aqueles que mais leem para estudar ou realizar trabalhos escolares (45%).

No caso de Marta, quase nenhuma destas conclusões são aplicáveis, na medida em que as bibliotecas – hoje em dia, pouco frequentadas -, são quase um local de culto para si, tal como as livrarias, e a escrita é um refúgio. No Instagram, a jovem apresenta-se como @books.and.me.19 e tem quase 1000 seguidores, sendo que lê dezenas de livros anualmente. «Se tivesse de definir o que significa para mim a leitura sem dúvida que a palavra que melhor definiria seria liberdade: eu e o meu livro, eu e aquela história, eu e aquelas personagens, nada mais importa naquele momento», diz. «O bookstagram – comunidade de leitores no Instagram -, para mim, é partilha e amizade. Não tenho dúvida alguma de que o bookstagram me deu muito mais do aquilo que eu lhe dei. As pessoas que conheci são o melhor de tudo e foi, sem dúvida, uma das melhores decisões que tomei: integrar-me nesta comunidade».

Assim como os livros, a fotografia analógica também tem sido maioritariamente esquecida. Mas o jornalista Gonçalo Martins, de 21 anos, e Beatriz Marques, de 28 anos, técnica de trâfego e assistência em escala no aeroporto – que fica «entusiasmada com aquilo que vai ver», cultivando este hábito sozinha ou com o namorado -, ambos da capital, continuam a amá-la. «Revelo fotografias quando quero oferecê-las a alguém. Acho uma bonita forma de recordar o momento, em papel. Temos coisas digitais a mais diariamente. Tinha uma moldura no meu quarto com espaço para 13 fotografias, 12 com um tamanho mais pequeno e uma maior ao centro. Queria arranjar uma forma engraçada de usá-la. Então, pensei em 12 coisas que, de algum modo, estivessem ligadas a mim. No computador, editei imagens e levei-as a um centro de impressão de fotos», conta. «Quando visitar os meus avós maternos, que já não os vejo desde dezembro, quero dar-lhes as fotografias que tirei no Natal para fazer um álbum do Natal de 2022».

«Não me lembro ao certo de quando comecei, mas acho que ganhei o gosto por causa dos meus avós paternos. Lembro-me de gostar de ver fotografias da minha infância e da vida dos meus avós. Via-as sentado ao lado da minha avó. Ela tinha uma máquina fotográfica com rolo e gostava de usá-la em momentos especiais, normalmente quando a família estava reunida. Sinto que revelar fotografias é um hábito que se está a perder e é compreensível. É mais barato, ecológico e fácil guardá-las num cartão de memória em vez de num álbum. Ainda assim, há memórias que gosto de ver para além de um ecrã».