Um sonho que durou vinte anos

‘Los pibes de El Gordo’ quiseram ser grandes e foram-no – fundaram o Arsenal de Llavallol que acabou cedo demais.

Há uma velha frase que sentencia: «Os dias passam devagar; os anos é que passam depressa». É o Tempo que mexe com a idiossincrasia dos homens. Para oPaulo de Carvalho dez anos eram muito tempo e ele, se calhar, já mudou de ideias por tanto outro tempo já passado. Carlos Gardel que teve pouco tempo para viver e morreu novo porque os deuses querem jovens na sua companhia cantava: «Las nieves del tiempo platearon mi sien/Sentir/Que es un soplo la vida/Que veinte años no es nada/Que febril la mirada/Errante en las sombras, te busca y te nombra». Vinte anos não são nada. Ou foram muito para um clube que passou pelo mundo como um cometa, o Arsenal de Llavallol, fundado precisamente em Llavallol, Lomas de Zamora, arrabaldes do sul de Buenos Aires, lugar onde se fixaram os querandíes, povo massacrado pela chegada dos espanhóis à América do Sul e foi ficando sem lugar para viver que não os subúrbios tristes de uma capital melancólica como o ritmo das milongas.

Em 1948 os Campeonatos Evita, assim chamados em honra de María Eva Duarte de Perón, a mulher do ditador JuanDomingo Perón que se tornou numa espécie de entidade santa dos descamisados, provocavam um absoluto entusiasmo nacional. A final do torneio de futebol era testemunhada pela figuras mais altas do Estado, presidente incluído, e as vitórias alindavam a dourado os emblemas que as conquistavam. Três jovens jogadores, todos eles mais tarde internacionais pela Argentina, Antonio Angelillo, Vladislao Cap e Humberto Maschio, decidiram que eram bons demais para não estarem presentes nos grandes festivais de futebol do país e que a melhor forma de contornarem esse equívoco era criarem um clube e esse clube levou o nome de Arsenal porque os ingleses continuavam a ser o sol resplandecente do association. E assim, nascido no dia 12 de outubro de 1948, o Arsenal de Llavallol apresentava-se ao mundo decidido a que jamais se esquecem dele. Esqueceram. Esqueceram tanto que raros são os que se recordam. E, no entanto, muitos dos rapazes que jogavam livremente nas ruas de Santa Catalina e de Libres del Sur ficaram para sempre na história do futebol argentino. A começar, claro, por Antonio Angelillo, Vladislao Cap e Humberto Maschio.

 

Vinte anos depois da sua fundação, o Arsenal de Llavallol desapareceu. Já não passava, então, de um clube satélite do Boca Juniors e os dirigentes do Boca foram impiedosos: reclamaram La Candela, as terras que tinham sido cedidas pelo presidente Perón para que os arsenalistas pudessem ter o seu campo, transformaram-nas numa espécie de centro de treinos para as camadas jovens e a razão da existência do Arsenal ficou-se por aí. Foi um dia dramático como nenhum outro para Anibal Diaz, conhecido por El Gordo, tal a sua corpulência física, um dos grandes impulsionadores do agregamento do grupo de jovens talentos de Llavallol, tido como um descobridor raro de talentos raros. Foram esses pibes de El Gordo os cabouqueiros da primeira presença no futebol a sério, filiados na Federação Argentina, e predispostos a iniciarem a vida do clube na IIIDivisão com o sonho de, um dia, talvez dez anos mais tarde, conquistarem o Campeonato Evita.

Três anos bastaram para que o Arsenal de Llavallol subisse de divisão. As suas rivalidades mantinham-se, ainda assim, pouco ambiciosas. Os sinais de maior excitação popular surgiam quando defrontava o Club Flandria ou o Sacachispas Fútbol Club. Mas as gentes do bairro tinham um orgulho inabalável pelos seus rapazes que jogavam vestidos com umas muito particulares camisolas às riscas verticais castanhas e amarelas e calções castanhos.

OArsenal pode nunca ter ganho o Campeonato Evita – aliás só se aguentou quatro épocas naIIDivisão para descer novamente e só continuar vivo por mais um pouco graças ao acordo assinado com o Boca Juniors – mas foi uma daquelas canteras que marcou para sempre o futebol da Argentina, produzindo craques de inequívoca qualidade para os grandes clubes do país. Ángel Clemente Rojas Rojas tornou-se numa das glórias do Boca Juniors; Vladislao Wenceslao Cap um tremendo defesa-central do Racing e do Rivel Plate e, mais tarde, selecionador durante oMundial de 1974, Humberto Dionisio Maschio o cérebro e a classe pura de um Racing campeão; Antonio Valentín Angelillo acabou por emigrar para Itália, para o Inter, assumindo-se como avançado temível vindo a ser convocado para a squadra azzurra já depois de ter vestido a camisola da Argentina.

O Arsenal de Llavallol mais do que um clube foi um sonho. Mas um sonho sem medos ao contrário do de Gardel: «Tengo miedo del encuentro con el pasado que vuelve/A enfrentarse con mi vida/Tengo miedo de las noches que pobladas de recuerdos/Encadenen mi soñar». Um sonho de valentes.

afonso.melo@newsplex.pt