A Direcção Geral do Arrendamento Forçado

Os tribunais ainda debatem, de forma inacreditável, qual a abrangência do significado de “devoluto” e de “desocupação do imóvel, atestada por vistoria”, pois não há meio de concordarem quando um imóvel de uso habitacional está, “de jure”, “desocupado”. Impressionante!

por Pedro da Costa Mendes
Sócio Partner da Cerejeira Namora Marinho Falcão sociedade de advogados

 

“Entretanto, na sede da recém-criada Direcção Geral do Arrendamento Forçado, localizada em morada não divulgada, no piso -1 de uma garagem anteriormente devoluta de um imóvel do Ministério da Habitação, a azáfama era grande.

De facto, após as obras infindáveis de adaptação da “garagem” que sorveram quatro vezes mais do que o orçamento inicial, alvo de adjudicação por convite urgente, haviam, finalmente, instalado as secretárias e cadeiras no imenso open space onde, nós, os mais de 2500 novos funcionários públicos, nos acotovelávamos.

Havíamos sido orgulhosamente contratados com a específica patriótica missão de identificar aqueles imóveis devolutos detidos por particulares no Pais (com a específica indicação para desprezarmos os que fossem propriedade do Estado e/ou organismos públicos ou do sector empresarial do Estado), negociarmos o valor pelo que o Estado iria tomar de arrendamento os mesmos, “nem que seja à força”, e para instruirmos devidamente os processos respectivos. Assim o expusera claramente o diligente novo Director-Geral, transitado directamente do aparelho do partido do Governo, no motivador discurso semanal, proferido para todos os incumbentes, nesse exacto open space.

Que suma missão nos confiaram! Só de pensar que há tantos proprietários privados que não partilham egoisticamente a respectiva propriedade com o resto da sociedade…. Já estará para breve, diz-se, a publicação do novo decreto-lei que exige o aluguer coercivo pelo Estado de todos os automóveis particulares que ficam parados a maior parte do dia sem utilização, bem como as bicicletas e as trotinetes, sem contar com as televisões, máquinas de lavar e de costura e as playstations… Equipamento de luxo que a maior parte das famílias privadas só liga algumas horas por dia. Há que partilhar! A propriedade é um valor meramente instrumental. Um vizinho velho, no outro dia, pôs-me à porta do andar uma sachola, com um papelinho a dizer “pertença de todos, para o Alentejo”, mas eu não percebi o que o velho quereria dizer…

Numa altura em teriam já passado mais de três anos e meio após a entrada em funcionamento deste precioso novo organismo, o número recorde de sete arrendamentos havia já sido atingido. E, não fora o facto de forças bloqueadoras do desenvolvimento actuarem incessantemente, mais cinco arrendamentos coercivos poderiam bem ter sido concluídos.

Os tribunais ainda debatem, de forma inacreditável, qual a abrangência do significado de “devoluto” e de “desocupação do imóvel, atestada por vistoria”, pois não há meio de concordarem quando um imóvel de uso habitacional está, “de jure”, “desocupado”. Impressionante!

Já não faltam histórias de diligências dos Serviços Camarários a percorrer as listagens dos fornecedores de electricidade e água e a acompanhar as Polícias Municipais a arrombar todas as portas dos imóveis com baixo consumo e verificar in loco quais desses estão “devolutos” ou “desocupados”. Já para não falar sobre o que fazer com os antigos espaços de Alojamento Local (cuja licenciamento foi, no entretanto, proibido) e que estão agora sem ocupação efectiva. Não se podem esconder, esses proprietários açambarcadores e negadores do progresso. Ainda no outro dia, uns tentaram apresentar uma queixa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem….Aparentemente, alegaram terem perdido a sua própria habitação, por terem deixado de poder pagar o crédito habitação. Eram gestores de Alojamento Local, na remodelação do qual haviam investido todas as poupanças e agora estão impedidos de o explorar. Ficaram sem rendimento e com o apartamento devoluto. A renda proposta pelo Estado é insuficiente para pagar o crédito bancário…Que topete…. Mal vai a justiça e a consciência social.

Bom, de todo o modo, eu por mim, já posso dar o meu contributo por finalizado neste departamento. Acabaram de me aceitar a rotação para a nova Direcção Geral da Restauração do Estado que em boa hora a criaram: não se aguentava mais ter de suportar tantos restaurantes detidos por particulares, demasiados a enriquecerem à custa das necessidades básicas da sociedade – muito orgulho sinto em ser um dos 1750 novos funcionários públicos recém-contratados para auxiliar a coercivamente colocar todos esses restaurantes privados a serem geridos unitariamente pelo Estado. Assim, pode, a final, não haver mais nenhum prato do dia, mas o consommé será igual para todos. “

Com mil cabrestantes, livremo-nos de um filme assim..