O Peru é um país fantástico. Desde Lima La Fea como lhe chamam os que não têm grande paciência para as fachadas escuras de prédios antigos nem quando se aproximam da imponente Plaza de Armas e da Catedral, cidade de Pizarro, o chefe dos homens de ferro que vieram para roubar o ouro dos incas, na altura Ciudad de Los Reyes, até à vista aberta do Pacífico em Miraflores e Chorrillo, e mais ainda quando mergulhamos no Vale do Urubamba em busca da cidade perdida de Machu Pichu que Bingham devolveu ao mundo.
Em 1938, os peruanos, que adoram futebol, como todos os habitantes da América Latina que encontraram no jogo inventado pelos ingleses uma forma de assumirem as suas identidades nacionais como em nenhum outro lugar deste planeta redondo e apenas ligeiramente achatado nos polos, estavam orgulhosos como nunca: eram a única equipa do continente americano a estarem presentes nos Jogos Olímpicos que Adolfo Hitler tinha garantido serem organizados pela Alemanha e onde iria, pensava o pobre tolo, enxovalhar todas as raças por via da superioridade indiscutível dos arianos. Todos sabemos como a história acabou, que até um rapaz assim para o escuro chamado Jesse Owens o cretino do Adolfo teve de engolir, com mais Jägermeister ou menos Jägermeister, ninguém teve dúvidas que foi uma indigestão das antigas, muito bem feito para o animal, pena não ter logo ali batido a bota com uma daquelas crises de fígado das antigas, aquelas que o divino Eça afirmava derrotarem um homem só por causa de uma víscera ou outra.
O torneio de 1936 foi disputado da forma mais simples possível: apenas eliminatórias. Quem perdesse ia para casa. Além disso, pela primeira vez, o Comité Olímpico Internacional acertou com a FIFA que as seleções pudessem apresentar equipas mistas, isto é, formadas tanto por amadores como por profissionais. Algo que trazia para o futebol olímpico uma qualidade que não tivera até então. De peito cheio, envoltos num fervor patriótico capaz de derrubar a cordilheira dos Andes, os peruanos lançaram-se como feras sobre os infelizes dos seus primeiros adversários, os finlandeses, e despacharam-nos com um resultado próprio de apavorar hipopótamos: 7-3. Ah! Os adversários que se pusessem a fancos.
Se o resultado do Peru frente à Finlândia provocara escândalo – os europeus receavam, sobretudo, o Uruguai e a Argentina, que não se tinham feito representar – o adversário que lhe cabia defrontar a ser era, só pelo nome, capaz de apavorar um manada de rinocerontes, meia dúzia de crocodilos e uma boa centena de bois-cavalo. Chamava-se Áustria, tinha o cognome de Wunderteam (a Equipa Maravilhosa), um jogador sublime, Mathias Sindelar, o Homem de Papel, e dois anos antes foram vergonhosamente espoliada no Mundial de Itália pelo motivo óbvio de que a Itália de Mussolini não poderia deixar de ser campeã do Mundo numa prova realizada em sua própria casa. Desse lá por onde desse.
Surpreendendo toda a gente, o Peru arrasou a Áustria por 4-2. Prova que o futebol sul-americano continuava a ser meio misterioso aqui na Europa. Estávamos a 8 de agosto, a Áustria chegou a uma vantagem de 2-0, em seguida a reação peruana devolveu justiça ao resultado embora tenha sido necessário recorrer a prolongamento. Foi aí que as coisas começaram a correr mal. Um adepto do Peru entrou em campo e foi às ventas a um incrédulo jogador austríaco e, aquando do golo do empate, houve uma espécie de invasão do relvado com espetadores e jogadores unidos num abraço comum. Viria a custar caro.
A Áustria protestou o jogo. Um grupo formado por dirigentes do COI e da FIFA, do qual Jules Rimet fazia parte, juntou-se para ouvir testemunhas de um lado e de outro. A decisão foi tomada rapidamente: o jogo seria repetido no dia 10 de junho e sem presença de público. Ah bom! Mas isso seria se os peruanos estivessem para aí virados. Foram aos arames! Recusaram-se pura e simplesmente a porem os pés no estádio, o COI, a FIFA e a Áustria que fizessem a sua festazinha particular mas que não contassem com aqueles que se consideram justos e válidos vencedores da eliminatória e que exigiam o reconhecimento da sua presença na meia-final no olímpico e ali à beirinha das medalhas. A Áustria foi oficialmente considerada vencedora do encontro e não faltou quem acusasse o governo do Reich de ter contribuído para essa posição prepotente tendo em conta que a equipa peruana era formada por vários jogadores índios e negros e o pequeno Adolfo não estava para suportar mais vexames depois de ter assistido a Jesse Owens ganhar a prata nos 100 metros. Numa atitude ainda mais desafiadora, toda a delegação do Peru e não apenas a equipa de futebol fez as malas e foi para casa A Colômbia e o Chile fizeram o mesmo num exemplo de franca solidariedade. Hitler que ficasse lá com a porcaria dos seus Jogos Olímpicos. Se tivesse sido verdadeiramente esperto tinha autorizado apenas a presença dos alemães. Seria uma vilanagem de medalhas de todas as cores.
afonso.melo@newsplex.pt