A desgraça de Comeuñas

Borocotó fez questão de criar uma personagem infeliz – ofereceu-lhe uma deficiência cardíaca que o afastou do futebol

Comeuñas – não precisa de tradução. Um garoto e o seu sonho de ser um dia ídolo das multidões. Com uma bola nos pés. Miúdo pobre, filho de uma família de classe operária de Buenos Aires, criança como qualquer outra carregada de sonhos, às vezes sonhos mais pesados do que o sono que consegue dormir. Um jornalista famoso, um dos maiores do seu tempo, nascido em Montevidéu, no Uruguai, Ricardo Lorenzo Rodríguez, mas que acabou por se radicar em Buenos Aires trabalhando para El Gráfico. Tal como Comeuñas tinha uma alcunha – Borocotó. Foi da sua imaginação que naseu a canção dos meninos pobres de las calles da capital argentina: «Siento ruido de pelota, y no sé, y no sé, y no sé lo que será/Es el club de Sacachispas que se viene, que se viene, que se viene de ganar». Sacachispas é, portanto, o início da magia de uma aventura de rua. Comeuñas reúne os seus companheiros de brincadeiras. Pelo meio entra a grande heroína do desenrolar da trama: a bola – uma bola de trapos. Sacachispas é o nome do clube que criam. Uma bola de catechu é o que mais desejam para poderem deixar de lado a pelota de trapos.

Comeuñas é um desgraçado! Borocotó não teve piedade da sua personagem. Foi cruel até ao osso. Como o divino Eça com Arturzinho Corvelo de A Capital. Nunca uma personagem foi tão maltratada pelo seu autor! Artur chega a Lisboa, vindo de Oliveira de Azeméis, de casa das tias, apanhando o comboio na estação de Ovar, com umas libras de herança e com a convicção de que se fará um poeta de renome e livros publicados com críticas laudatórias. Eça transforma-o num idiota chapado, um cretino abusado por todos aqueles que vai conhecendo, uma vítima da ganância do seu grupo de pseudo-amigos que estão de olho no dinheiro que tem e completamente nas tintas para sua a obra literária de truz. É preciso saber desprezar a sua própria criação para inventar uma personagem como Artur, explorado por Melchior e Teodósio e que não chegará nunca a publicar a poesia reunida em Esmaltes e Jóias e a prosa aglomerada em Amores de Poeta. Claro que não deixa de ser intrigante o motivo pelo qual um autor dedica o seu tempo a refinar as características de uma fraude. Ricardo Lorenzo Rodríguez não foi tão longe. Talvez tenha tido um rebate de consciência. Mas não premiou a sua personagem com o êxito e atirou-a para a vertigem do fracasso.

Comeuñas e a sua pandilha cumprem o sonho de ter uma pelota de cuero (e também há um filme com esse nome que fica já aqui anotado para produzir uma crónica), deixa de ser um potrero, expressão que os argentinos usam para definir os miúdos que dão pontapés à toa pelas esquinas dos bairros pobres, e consegue jogar por uma equipa do meio da tabela da primeira divisão. É aí que Borocotó dá cabo dele sem o mínimo de comiseração. Enfia-o numa inexplicável série de desmaios, muitos deles em campo, durante os jogos, e faz com que o médico que o assiste lhe diagnostique uma deficiência cardíaca que poderá matá-lo se insistir em jogar futebol. Tal como acontece com o imbecil do Arturinho Corvelo, não conseguimos deixar de nos perguntar porque diacho Ricardo Rodríguez resolveu criar uma personagem sobrecarregada de infelicidade? Mistérios da literatura, neste caso de El Diário de El Comeunãs, uma série de artigos trazidos a público noEl Gráfico e que depois serviu de base para a película dirigida e filmada por Leopoldo Torres Ríos em 1948.

Pelota de Trapo foi um êxito. Surpreendentemente para o espetador a equipa de Comeuñas fica à beira de ganhar o primeiro campeonato da sua história. É tempo de fechar o segredo: o médico aceita a súplica do jogador e promete não revelar a sua enfermidade até final da prova para que este possa gozar o título de campeão. Ficamos na dúvida se a festa não será substituída pelo negrume de um funeral. Na vida verdadeira, aquela que está para lá das telas, Comeuñas chamava-se Armando Bó. Não gostava de futebol por aí além. Até certo ponto era como o Eduardo Neves Barroso, o Dadinho da nossa infância nos Olivais Sul: de cada vez que algo lhe corria mal durante um jogo, defendia-se – «Eu sou bom é no basquete!». Armando Bó era bom era no basquete: começou ainda criança no Sporting Club de Villa Ortúzar, foi um astro no San Lorenzo de Almagro e tornou-se profissional no Brasil, no Fluminense, antes de terminar a carreira no Tabajaras. A par de Toscanito, alcunha de Andrés Poggio, que só tinha treze anos quando assumiu o papel de seu colega de sonhos no Pelota de Trapo, atuou com alguns dos maiores nomes do futebol argentino do seu tempo: Gullermo Stábile, Higino Garcia, Vicente e La Mata, Tucho Mendez. De certa forma o futebol deu-lhe uma vida nova e abriu-lhe um futuro agradável. Pois, pois… Tentem lá realizar um filme chamado ‘Pelota de Trapo’ com jogadores de basquetebol… Reconheçam que não dá jeito nenhum. Armando Bó nunca teve problema em reconhecê-lo. Nem depois de ter jogado com a pelota de cuero.
afonso.melo@newsplex.pt