Compreender Lula

Isto é, Lula sabe das malfeitorias do seu aliado, mas não o quer fora do sistema internacional. Bem pelo contrário, quer uma Rússia integrada no arco de alinhamento dos Estados que estão a promover.

por Francisco Gonçalves

«Quando Pedro me fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo» (ou «Quando Lula fala da guerra, sei mais de Lula do que da guerra»)

As palavras do Presidente da República Federativa do Brasil, a respeito do conflito da Ucrânia, chocaram os mais desatentos e foram interpretadas de modo descontextualizado. Para efetivamente percebermos para onde vai a política externa brasileira, devemos enquadrá-las no momento que vivemos, e no qual o Brasil se está a posicionar.

Os primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva como Presidente do Brasil (2003-2010) coincidiram com um momento de euforia de crescimento e desenvolvimento do país, decorrente de alguns fatores como a descoberta do petróleo do pré-sal, o aumento de produção de grãos, o aumento de produção do minério de ferro, devidamente conjugados pela alta dos preços no mercado internacional.

Aquele Brasil, bem como os programas sociais de grande alcance que então foram levados a cabo, como o ‘fome zero’, ou a construção de grandes infraestruturas, deram a Lula a aura de grande governante e de líder de uma potência em ascensão, que finalmente parecia estar a cumprir o seu papel no mundo.

O Brasil formou, então, juntamente com a Rússia, a Índia e a China (a que se juntou a África do Sul), os BRICS, (supostamente) as potências do futuro. O grande objetivo destes países era uma reorganização do sistema internacional, no qual todos eles deveriam ter outro peso específico, particularmente nas suas regiões.

Na realidade, o verdadeiro objetivo dos BRICS é o da substituição da ordem internacional pós-guerra fria, dominada pela hegemonia norte-americana, financiada pelo dólar, quer como unidade geral das trocas internacionais, quer como reservatório de valor.

É sob o pano desse verdadeiro objetivo que devemos colocar as afirmações de Lula sobre a Ucrânia.

O Presidente do Brasil sabe que a invasão da Ucrânia é um ato ilegal e criminoso à luz do direito internacional. O seu País votou sempre alinhado com essa posição nas Nações Unidas. Há algumas semanas, Lula disse, em entrevista, que a Rússia não poderia ficar com o território que tinha ocupado, retirando do território a devolver a península da Crimeia (próximo do proposto por Henry Kissinger, logo após o início do conflito).

Isto é, Lula sabe das malfeitorias do seu aliado, mas não o quer fora do sistema internacional. Bem pelo contrário, quer uma Rússia integrada no arco de alinhamento dos Estados que estão a promover, nas palavras de Xi Jinping, «grandes mudanças que só ocorrem de cem em cem anos».

As afirmações do presidente brasileiro tiveram lugar após visitar a China, tendo incluído, nas suas afirmações, a «Índia e a Indonésia, que também querem a paz».

Recorde-se ainda que, semanas antes daquela visita do presidente brasileiro, estiveram em Beijing representantes do Irão e da Arábia Saudita, para retomar relações diplomáticas, interrompidas desde 2016.

Durante muitos anos chamou-se a atenção para a alteração do sistema internacional que estava em curso, muito decorrente do crescimento económico chinês. O que agora vemos acontecer é a formação de alianças da China, um pouco por todo o mundo, com outros Estados (sobretudo potências regionais) revisionistas.

O êxito dos EUA na Guerra Fria deveu-se, em grande medida, à solidez do seu sistema de alianças internacionais, apenas possíveis pelo consenso bipartidário interno em torno das suas relações internacionais.

O discurso de Lula sobre a guerra não é, pois, sobre a guerra, é sobre a construção de um sistema de alianças internacionais que quer mudar as regras do jogo. Lula apenas escolheu o seu lado. Aliás, já tinha escolhido.