Quase 90% de Portugal está em seca

Quase 90% de Portugal Continental está em seca meteorológica. O número quase duplicou em apenas um mês. Mas porquê? O que é feito da água que caiu no Inverno? De que forma se conseguirá mitigar o problema?

Quase 90% de Portugal está em seca

O cenário é alarmante: barragens sem água, agricultores sem maneira de fazer as sementeiras, dificuldades na gestão de água para abastecimento público, falta de chuva, deterioração de habitat para algumas espécies e muitas interrogações. Mas afinal como chegámos a este ponto e de que forma será possível fazer face à situação? Nos jornais, telejornais e na rádio, lemos e ouvimos que a seca meteorológica em Portugal se agravou em abril e chegou a quase 90% do território. 

Esta semana, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) revelou que no final de abril, 89% de Portugal Continental estava em seca, quando em março era apenas 48%. Além disso, cerca de 14% do território continental está em seca extrema e quase 20% em seca severa. 

De acordo com o último boletim climatológico IPMA, verificou-se no fim de abril um aumento significativo da área e da intensidade em seca meteorológica, destacando-se a região Nordeste na classe de seca moderada e na região sul os distritos de Setúbal, Évora, Beja e Faro nas classes de seca severa a extrema. No fim do mês passado, detalha o documento, 33,2% do território estava em seca moderada, 22% em seca fraca, 19,9% em seca severa, 14,1% em seca extrema e 10,8% normal. Em abril do ano passado, todo o território de Portugal continental já estava em situação de seca, a maior parte em seca moderada (87,2%). Recorde-se que existem quatro tipos de seca: meteorológica, agrícola, hidrológica e socioeconómica.

Segundo os dados disponibilizados, no mês de abril, o total de precipitação (18,2 milímetros) foi muito inferior ao valor médio (23%), sendo o 3.º abril mais seco desde 1931. Relativamente à percentagem de água no solo, o instituto refere que houve uma diminuição muito significativa da percentagem em todo o território.

Por isso, adianta ainda, o mês de abril classificou-se como muito quente em relação à temperatura do ar e extremamente seco em relação à precipitação. Além de ter sido o mais seco, foi o 4.º abril mais quente desde 1931 (o mais quente foi em 1945), tendo sido registadas três ondas de calor no território continental, que afetaram as regiões do interior Norte e Centro, vale do Tejo, Alentejo e Sotavento Algarvio.

Na quarta-feira, à margem de uma iniciativa em Abrantes, a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, admitiu que o país enfrenta muitas dificuldades por causa da seca. Mas que o Governo está «atento» e a «trabalhar para enfrentar este problema». Por outro lado, também a Comissão Europeia admite estar preocupada com a seca nos países do sul da Europa. Bruxelas classifica a situação da falta de chuva nos países do sul europeu como «preocupante» e «extremamente grave para os agricultores». No domingo, a ministra da Agricultura e Alimentação, adiantava ter assinado o despacho que reconhece a situação de seca em 40% do território nacional, no sul do país.

Caso a produção agrícola fique abaixo do esperado, a Comissão avisa que isso levará «ao aumento dos preços dos alimentos para todos os consumidores». No entanto, escreve a CNN internacional, Bruxelas só pode atuar, nomeadamente reforçando apoios à agricultura, após a devida notificação por Lisboa.

 

As principais causas 

Segundo João Joanaz de Melo, engenheiro do Ambiente, as secas «não são fenómenos incomuns em Portugal». «Neste momento, por causa das alterações climáticas, é expectável que este tipo de fenómenos seja cada vez mais frequente. Há uma causa estrutural que é a região em que estamos, onde o clima já é assim há muitos anos. No entanto, estamos a passar também um período de alterações climáticas à escala mundial, em que se prevê, especificamente para a região mediterrânica, progressivamente menos precipitação média e essa precipitação é concentrada nos chamados fenómenos extremos», explica ao Nascer do SOL o especialista. Interrogado sobre de que forma se conseguirá mitigar o problema, João Joanaz de Melo, lembra que «não há varinhas mágicas»: «Temos de fazer várias coisas. A primeira é ter consciência daquilo que estamos a enfrentar. A segunda, é a nossa corresponsabilidade para mitigar o problema. Temos de assumir que fazemos parte de uma comunidade internacional que tem de fazer esforço para mitigar o problema em termos das alterações climáticas», alertou. 

Especificamente sobre os problemas da seca, o engenheiro frisou que uma coisa é a seca meteorológica, outra coisa é a seca hidrológica. «Esta última está relacionada com a quantidade de água que temos nos nossos sistemas hídricos. Porque se nós tivermos um ordenamento de território mais adequado, se protegermos as áreas de infiltração de água nos aquíferos, se tivermos uma ocupação do solo que facilite menos a perda de água em períodos de chuva, teremos os aquíferos mais carregados, retenção de água no solo e, em consequência, as nascentes terão água», explicou.

Por isso, parte do problema, é de ordenamento do território que está fortemente associado à disponibilidade hídrica para a mesma quantidade de chuva. «Se tivermos um melhor ordenamento de território, quer os efeitos das cheias, quer os efeitos da seca, tendem a diminuir, porque temos uma maior armazenagem de água no ecossistema», continuou. Segundo João Joanaz de Melo, existe ainda a questão dos «nossos» usos. «Sabendo que vamos ter progressivamente mais este tipo de problemas temos de mudar os hábitos», garante. «A maior parte da água que captamos é desperdiçada. Neste momento, de acordo com a última estatística que vi, a perda de água em sistemas urbanos está acima de 30% da média nacional», lamentou. «Acontece a mesma coisa nos sistemas de rega. Os usos dos edifícios domésticos, serviços e indústrias representam cerca de 20% do consumo de água, 78% da agricultura e 2% de outras coisas. Todas estas utilizações são pouco eficientes», acrescentou. 

 

Reaproveitamento das águas da chuva

Elsa Severino, arquiteta paisagista, explica que, em Portugal, «temos um regime de precipitação muito assimétrico», pois o nosso clima é consequência da influência mediterrânica e atlântica. «No primeiro caso, é responsável por elevadas temperaturas e reduzida pluviosidade a sul e este do país; por sua vez, a influência atlântica faz-se sentir especialmente no Inverno e nas regiões do noroeste português, e origina precipitações elevadas», contou ao Nascer do SOL. Além disso, segundo a arquiteta, também devemos ter em conta o relevo e a continentalidade que influenciam a distribuição das chuvas; assim, consideram-se três grandes zonas geográficas naturais no país: zona norte atlântica; zona norte transmontana e a zona sul mediterrânica. 

Elsa Severino recorda que choveu em dezembro e janeiro, provocando até inúmeras inundações. As principais albufeiras ficaram cheias, exceto no sul do país. «Não temos uma política de gestão da água e do seu armazenamento para o verão, muito menos uma política de ordenamento do território com vista à infiltração máxima de água no solo», lamentou.

Segundo dados oficiais, adianta, «temos reservas de 12 mil milhões nas albufeiras e 100 mil milhões de m3 nos sistemas aquíferos».

«Há armazenamento nas barragens e nas albufeiras hidroagrícolas, mas no sul do país nem tanto. Este é o panorama nacional, sendo que a agricultura portuguesa tem de mudar de paradigma, nalgumas regiões, devido à escassez de água» (ver págs. 26-27), lamentou a arquiteta. Por sua vez, continua, os aquíferos apresentam «uma enorme reserva de água», mas «têm de ser constantemente recarregados, naturalmente». «É nosso dever assegurar também a redução gradual da poluição das águas subterrâneas. Sem a presença da floresta, não há recarga de aquíferos», frisou. Além disso, de acordo com Elsa Severino, a água no solo português tem vindo a diminuir nas últimas décadas. 

Interrogada sobre as questões do desperdício, a especialista não vê que o problema esteja aí, mas sim «na ausência de uma política de gestão da água». «Nos períodos de seca apontam-se somente para reduções de consumo, mas nada acerca da política da conservação de água no Inverno. Há um Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água (PNUEA), que deve ser aprofundado e posto em prática».

 

Sem proibições ao consumo privado

No princípio do mês, após uma reunião com o IPMA, o ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, admitiu que possam vir a ser tomadas mais medidas de contingência, nos próximos meses, caso a situação de seca se agrave, adiantando ainda que todos «têm de trabalhar para criar uma cultura de risco».

«Temos de ter capacidade de adaptação a esta realidade. Tem de haver envolvimento de todos, desde empresas, cidadãos e municípios para ajudar a diminuir o risco. (…) Temos plena noção que em algumas zonas do país onde não há capacidade de abastecimento sem que chova poderá implicar tomar medidas do ponto de vista de contingência», alertou.

Na quarta-feira, à margem do lançamento do concurso público para a construção da Linha Rubi do Metro, o governante descartou, para já, a adoção de medidas proibitivas relativamente ao consumo de água, como por exemplo para piscinas. «Não vale a pena estarmos a introduzir uma cultura de proibição quando ela, neste momento, ainda não é necessária. Quando ela é necessária, nós não hesitamos», assegurou. Para combater a escassez de água, o ministro francês da Transição Ecológica, Christophe Béchu, declarou que, a partir de 10 de maio, em determinadas regiões do Sul do país é proibido lavar carros, regar jardins e encher as piscinas.

 

Sem água nas barragens 

Uma das situações mais críticas faz-nos viajar até à barragem da Bravura, no Barlavento algarvio, hoje com menos 600 000 metros cúbicos de água do que há um ano, obrigando os agricultores a procurar alternativas para contornar um cenário «cada vez mais complicado». Segundo o Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos, no último dia do mês de março de 2023, o volume de água na Bravura era de 4,747 milhões de metros cúbicos de água, equivalente a 13,6% dos 34,82 milhões de metros cúbicos de capacidade total de armazenamento.

De acordo com o presidente da Associação de Regantes e Beneficiários do Alvor, António Marreiros, no ano passado, a restrição de uso da água para rega imposta desde fevereiro de 2022 levou dezenas de agricultores e dois campos de golfe a recorrerem a dois furos – situação que se vai repetir este ano -, estando ainda a ser estudada a possibilidade de mais furos e preparada uma obra de grande envergadura para «travar as perdas de água».

Segundo o representante, a associação está a realizar sondagens em alguns terrenos para tentar encontrar água com qualidade e quantidade no subsolo, ainda sem sucesso, e espera que as águas residuais tratadas sejam «aproveitadas para regar campos de golfe». «No ano passado conseguimos salvar um pomar de citrinos», revelou ao Nascer do SOL. A barragem abastece cerca de 1 800 hectares de explorações no perímetro hidroagrícola de Alvor, num total de 937 beneficiários. «E são 500 regantes», acrescentou. 

O agravamento da seca no ano passado levou o Governo a restringir o uso da água para rega a partir da Bravura, servindo apenas para o abastecimento público, medida que este ano se iniciou dez dias mais cedo do que em 2022.

Segundo o IPMA, a continuação de temperaturas elevadas, ausência de precipitação e perigo de incêndio muito elevado são algumas das previsões para os próximos meses, revelou ao telefone com o Nascer do SOL.