A unção de Carlos III

O Crisma da unção de Carlos III foi previamente benzido pelo Patriarca de Jerusalém e por um arcebispo anglicano na Igreja do Santo Sepulcro, onde se crê que Jesus foi enterrado.

Por João Paulo André, Químico

C arlos III de Inglaterra foi coroado no passado sábado, 6 de maio, na Abadia de Westminster. O momento alto da cerimónia foi o da sua unção, que, no entanto, não foi dado a ver aos comuns mortais. Por detrás de um biombo, sentado no Trono de Eduardo (construído há mais de 700 anos), o óleo sagrado foi-lhe aplicado pelo Arcebispo de Cantuária na cabeça, no peito e nas mãos. Em 1953, aquando da coroação de Isabel II, mãe do monarca, a BBC interrompeu a transmissão durante os breves instantes da unção, que são de renúncia terrena e ligação ao divino. Enquanto isso, solenemente o coro canta ‘Zadok the Priest’, o hino que George Frideric Händel compôs para a coroação de Jorge II, em 1727. A letra, do Antigo Testamento (1 Reis 1:38-39), não podia ser mais adequada: «Zadoque, o sacerdote, e Natã, o profeta, ungiram Salomão como rei e todo o povo rejubilou».

A formulação do óleo da unção real perde-se nas brumas do tempo e é idêntica à do Crisma (do grego khrîsma, ‘ungir’) usado na administração de sacramentos e nas funções eclesiásticas de várias igrejas cristãs. O da coroação dos monarcas ingleses encontra-se guardado numa ampola de ouro em forma de águia (imagem), feita para a coroação de Carlos II, em 1661 (o monarca casaria um ano depois com Catarina de Bragança). A anterior ampola tinha sido fundida em 1649 durante a República de Cromwell, após a execução de Carlos I. A Colher da Coroação, na qual o óleo é derramado, é também de ouro e é o objeto mais antigo da cerimónia, datando do século XII. Foi salva da destruição em 1649 por um funcionário leal ao rei, que a entregou a Carlos II onze anos depois.

O Crisma da unção de Carlos III foi previamente benzido pelo Patriarca de Jerusalém e por um arcebispo anglicano na Igreja do Santo Sepulcro, onde se crê que Jesus foi enterrado. O azeite que maioritariamente o compõe foi produzido a partir de azeitonas colhidas no Monte das Oliveiras, em olivais pertencentes aos Mosteiros da Ascensão e de Maria Madalena. Foi neste último que a avó paterna de Carlos III, Princesa Alice da Grécia, foi sepultada. Por sua vez, a prensagem das azeitonas foi feita nos arredores de Belém. Simbologias e espiritualidades à parte, o óleo sagrado é composto por uma grande variedade de moléculas. Além dos triglicerídeos (principais constituintes do azeite), o preparado contém óleos essenciais, nomeadamente de flor de laranjeira, néroli (uma variedade amarga daquele citrino), rosa, jasmim e canela. Estes óleos voláteis são uma mistura complexa de terpenos, álcoois, aldeídos, cetonas e ésteres. Entre outros componentes de origem vegetal, o Crisma contém ainda benjoim, que é a resina do benjoeiro, uma árvore de grande porte originária da Ilha de Sumatra. Igualmente rico em óleos essenciais, o benjoim é usado em perfumaria e faz parte do incenso.

Sinal dos tempos, o novo monarca exigiu que o óleo da sua unção fosse inteiramente vegano. Tal requisito implicou um corte drástico com a tradição, porquanto o da coroação da sua mãe, assim como os anteriores, continham essências de origem animal, tais como âmbar cinzento e almíscar. O primeiro, o ambergris, é produzido no trato gastrintestinal dos cachalotes. Trata-se de um material gorduroso que quando fresco tem um cheiro fecal. Uma vez excretado pelos cetáceos, flutua na água dos oceanos e por exposição ao ar e à luz passa por uma série de processos de degradação de que resulta uma mistura complexa de substâncias de odor agradável, cujo principal constituinte é um álcool, a ambreína. Foi utilizado desde tempos remotos como afrodisíaco e na perfumaria. Atualmente, para este último fim, recorre-se a um substituto sintético. Tradicionalmente, o almíscar (do árabe almisk, que por sua vez derivou de mushk, o termo persa para ‘testículo’) provinha do cervo-almiscarado (um antepassado do veado de pequenas dimensões e sem hastes que tem por habitat a Ásia) e da civeta (mamífero carnívoro africano da família dos viverrídeos, à qual pertence a gineta portuguesa). Ambos possuem glândulas anais produtoras de uma secreção untuosa e de sabor acre. Entre os componentes principais do almíscar contam-se a muscona e a civetona, cetonas que continuam a ser muito utilizadas em perfumaria embora na atualidade sejam de síntese.

Há 70 anos, para a coroação de Isabel II também foi necessário preparar um novo Crisma: o que fora usado em 1937 para a coroação de Jorge VI, seu pai, há muito que havia rançado