Essa magia única de um boi a olhar para um palácio

Ficava na Rua do Ouro (pois claro!) e era a mais fascinante montra que existia em Lisboa para garotos da minha idade. Para lá da vidraça da Biaggio Flora, entre miniaturas de automóveis da Corgi Toys, da Dinky Toys ou da Solido, ziguezagueavam os comboios eléctricos da Märklín.

Eu não passava de um garoto mesmo muito garoto e, de repente parecia um boi, um daqueles bois que olham para palácios, ou pelo menos há quem diga que sim já que eu nunca vi tal coisa, nem sequer na Índia onde bois e palácios bondam por toda a parte. Não era absolutamente apanhado de surpresa, a verdade é essa. Vinha de eléctrico desde Campo de Ourique, no 28, onde passava os fins-de-semana em casa dos meus avós, no nº 10 2º andar da Rua Francisco Metrass, e deambulava pela Baixa com aqueles à vontades muito à vontadinhas muito próprios da miudagem da minha geração. Sabia o meu destino porque o meu destino era o fascínio maravilhoso de ficar com os olhos presos a uma montra. Mas pelo caminho, mal entrava na Rua do Ouro, pelo lado norte, gastava uma boa dose de energia bovina na Loja Dentinho, que era especialista em miniaturas de automóveis. Às vezes começava o percurso um bocado mais atrás, na Pinóquio, dos Restauradores, ou na Quermesse de Paris, que ficava assim numa espécie de um beco junto ao Hotel Avenida Palace. Mas o palácio dos palácios, aquele que me embasbacava ao ponto de ficar com água na boca e com um fio de baba a escorrer-me pelas beiças era a Biaggio Flora. Chiça! Deixem-me que vos diga: a Biaggio Flora merecia um ponto de exclamação. Biaggio Flora! Prontinho, aí está ele. Espreitava cada canto da montra com o máximo de atenção: ora às miniaturas de automóveis, ora às miniaturas de soldados das mais diversas épocas, ora às caixas de navios e aviões para montar, ora às miniaturas de animais selvagens, mas sobretudo ao comboio eléctrico que rodava teimosamente nos carris através de umas casas e entrando num túnel para surgir apetitosamente do outro lado, movimento contínuo que me punha as órbitas a rodar com ele. Lá está: era eu feito boi.

Num dos meus aniversários, não posso dizer ao certo qual, o meu avô Acácio cumpriu-me um sonho e ofereceu-me um comboio eléctrico. Uma caixa grande, rectangular, só com a base: um transformador que regulava a velocidade, uma locomotiva das antigas do velho Oeste, duas carruagens – uma de transporte de passageiros e outra de carregar carvão -, linhas suficientes para fazer um 0 bastante razoável e até uma passagem de nível que, como todas as passagens de nível, levantava e baixava uma barreira à passagem da composição. Nos anos seguintes fui comprando caixas avulso para que o 0 deixasse de ser apenas um 0 e tivesse curvas e contra curvas e não tardou a que as linhas já obrigassem a que eu ocupasse o chão do meu quarto por inteiro e à tarefa sempre aborrecida de desmontar tudo quando chegava a hora do comboio recolher à caixa. O meu sonho era grande e impossível: ter um igual ao que podia ver, aparvalhado, não na montra da Biaggio Flora mas sim lá dentro, numa sala que ficava nas traseiras da sala principal, volteando por entre uma paisagem meio-alpina, com casas, carros, pessoas, um monte alto e verde, árvores e uma estação requintada que até metia um senhor a ler o jornal. Piramidal! E, atenção, requinte dos requintes: a marca soava como nenhuma outra – Märklín. Deixemo-nos de histórias: o supra-sumo dos comboios eléctricos, acima da Bachmann, da Ethaern, ou da Kato, por exemplo, que apresentavam modelos de inequívoca qualidade. Mas Märklín era Märklín e ponto final. E foi com um orgulho impante que me vi proprietário de um comboio eléctrico Märklín. O resto era conversa.

A Märklín nasceu no ano de 1859, em Göppingen, no Baden -Württenberg por via da imaginação de um mamífero chamado Theodor Friedrich Wilheim Märklín. Era um loja de brinquedos como tantas outras, especializada sobretudo em casas para bonecas, fabricando todos os pormenores necessários para tornar habitável, confortável ou até luxuosa a habitação preferida das meninas para as suas protegidas, até que Theodor se lembrou de lançar os comboios eléctricos em 1891. E, assim sendo, se até então era a marca preferida das rapariguinhas alemãs, passou a ser procurada igualmente por rapazes. E oferecia, além de um enorme sortido de objectos que serviam para tornar cada vez mais autênticas as linhas de caminho-de-ferro em miniatura, várias escalas de ia da famosa H0 à pequenina Z.

De um dia para o outro, Theodor espalhou por todas as crianças que podiam ter acesso a um comboio eléctrico – e é preciso dizer que era um brinquedo caro, sendo também caros os acessórios que se compravam avulso – um divertimento incomum. Os grandes fanáticos montam verdadeiras feiras internacionais nas quais apresentam os seus modelos e as paisagens que escolhem e fabricam por onde eles serpenteiam com uma firmeza considerável. Apesar de diversas dificuldades económicas que atravessou, a Märklin continuou nas mãos da família durante várias décadas até ser comprada pelo grupo inglês Kingsbridge Capital em 2006 por cerca de 38 milhões de euros. Mas o nome dos pequenos comboios resiste a tudo, até ao tempo. Já não os vejo rodar na montra nem na sala interior da Biaggio Flora – o comerciante italiano que se estabeleceu em Lisboa e continua a ter descendentes que se dedicam a vários tipos de negócios – e a última vez que me recordo de ver rodar sobre as linhas que eram atravessadas a meio por um fio condutor eléctrico que entrava em contacto com a locomotiva através de uma saliência que esta tinha por baixo ainda os meus filhos eram crianças e eu, volta e meia, montava o circuito para os divertir. Mas, para compensar, vi filmes extraordinários que me foram postos frente aos olhos pelo meu bom amigo Israel que tem o vício dos comboiozinhos e monta paisagens de me voltar a deixar como um boi: isto é, embasbacado frente a um palácio. Mesmo que nunca tenha assistido a uma cena do género. Estarei mais atento aos palácios e aos pascácios que os observam. Pode ser que no meio deles encontre um boi…

Carros de corrida

Na grande sala da entrada da Biaggio Flora havia uma pista de carrinhos de corrida que podíamos experimentar. Cada um pegava numa manete e controlava a velocidade com o polegar indo mais a fundo ou menos porque as curvas eram suficientemente apertadas para atirarem com um veículo para fora da pista e obrigar assim a uma derrota com o seu quê de humilhante. Outro brinquedo que não era para qualquer um por causa do preço mas que tinha em comum com os comboios eléctricos a existência de uma série de acrescentos avulso de forma a tornar as competições mais interessantes e mais autênticas. Havia à disposição dos apaixonados diversas marcas de automóveis, desde os de verdadeiras corridas de pista, como Fórmula 1 ou Indianápolis, aos de rallies, como havia igualmente pedaços de pista que ajudavam a cada um a construir o circuito que lhe desse na gana, mais curvas ou menos curvas. Acrescentava-se também o panorama em redor. As boxes com os seus mecânicos, o homem da bandeirola de xadrez, árvores, casas e bancadas onde se sentava o público embevecido. Houve uma altura que, para quem não podia dar-se ao luxo, o melhor lugar para se fazer uma corrida numa pista e carrinhos de pista era a Feira Popular, onde existiu uma que parecia à prova de tudo e mais alguma coisa, principalmente à forma descuidada como os clientes a usavam. Também durante um tempo foi possível entrar em prova no Jardim Cinema, na Av. Pedro Álvares Cabral, enquanto outros se dedicavam ao bilhar ou ao snooker.

Sem querer voltar à metáfora do boi e do palácio, o que podia ser mais atractivo para os miúdos da minha idade do que carros em miniatura? Confesso que ainda hoje conservo o fascínio e colecciono os que via estacionados ou a percorrer estradas nos anos-60 (os automóveis passaram a ser quase todos iguais a partir dos anos-80), desde o Renault Dauphine ao Anglia Frascinante, desde o Citroën Boca-de-Sapo ao Austin Oxford, desde o Volkswagen da polícia alemã que tinha um botão em cima para virar as rodas ao Hillman que abria o vidro de trás, já para não falar do encantador jipe do Daktari, com riscas de zebra, do Lincoln presidencial que levava uma pilha e, com ela, punha uma televisão a passar imagens no banco traseiro e do infalível Aston Martin do James Bond com o seu botão para ejectar o bonequinho que ia ao volante. Como apreciador mesmo muito antigo, as minhas preferências iam para os Corgi Toys, de longe os mais perfeitos em todos os pormenores, até no tirar e pôr pneuzinhos de borracha. Foi também um alemão a fundar a marca, embora em Inglaterra: pouco antes da II Grande Guerra Phillip Ullmann, que escolhera a cidade de Northampton para viver, criou a Metoy (Metal Toy) e cedo teve a sociedade do seu compatriota Arthur Katz. Durante seis anos, e a despeito de todas as dificuldades com que tiveram de lidar, Phillip e Arthur trataram de fabricar modelos cada vez mais aperfeiçoados. A fábrica já dava trabalho a 600 criativos quando a dupla resolveu transferi-la para perto de Swansea, no País de Gales. E por causa daqueles cãezitos de perna curta (e bastante irritantes, já agora) naturais de Gales, os Corgi, alteraram-lhe o nome. Em 1956, a Corgi cometeu a proeza de pôr no mercado miniaturas de todos os automóveis familiares fabricados na Grã-Bretanha, desde o Ford Consul ao Austin Cambridge e desde o Vauxhall Velox ao Hillman Husky, acrescentando-lhes dois desportivos, o Triumph TR2 e o Austin-Healey 100.

A Corgi não demorou a ter concorrência tal a popularidade das miniaturas feitas à base de zinco. A Dinky Toys apareceu em 1934 pela mão de Frank Hornby, o homem que estivera na base da criação de um dos mais entusiasmantes brinquedos do início do século passado, o Meccano, peças de metal que se uniam umas às outras por porcas e parafusos e permitiam a construção de tudo e mais um par de botas, desde motos e carros a casas e aviões. O entusiasmante no Meccano – recordo-me de haver um no sótão da Casa das Conchas, a casa dos meus avós no Olival, perto de Ourém – era a variedade imensa de peças e a forma como se encaixavam de uma forma muito mais flexível do que acontecia com o Lego, por exemplo. Dinky já é, por outro lado, um nome com a sua dose de historietas, sendo que o baptismo mais provável tenha surgido da boca de uma das filhas de Frank quando viu um modelo Meccano pela primeira vez: «dinky», soltou. Uma expressão escocesa que se poderia traduzir por ‘porreiro’. 

Se as miniaturas de automóveis feitas em Inglaterra são claramente as que mais se aproximam do original, há que dizer que os franceses da Solido começaram com o negócio antes dos seus vizinhos do lado de lá da Mancha. Um fulano com um nome arrevesado, Ferdinand de Vazeilles, avançou com a sua fábrica em Nanterre, nos arredores de Paris, em 1930. Mas um pormenor fundamental marcou o nascimento da Solido: Ferdinand não começou por copiar modelos já existentes e lançou, em três anos, três carros diferentes, simplesmente Solido Major, Solido Junior e Solido Baby. Só mais tarde abriria uma linha a que deu o nome de L’Age d’Or reproduzindo todos os automóveis mais famosos numa escala de 1:35. Embora sendo considerada de um realismo único em relação aos pormenores – o que se compreende porque tentou abarcar desde logo modelos de escalas maiores – a Solido, tal como aconteceu com os italianos da Polistil e da Bburago, foi acusada de não reproduzir as cores originais das marcas, preferindo tons mais neutros. Já a Matchbox, que surgiu apenas nos anos-50, entrou à bruta na competição ao fabricar o carro em que a rainha Isabel II surgiu durante a sua coroação, com o modelo a vender mais de um milhão de cópias. A ideia básica de mercado era construírem modelos que coubessem dentro de pequenas caixas, e daí o nome. Mas ao contrário da Solido ou da Corgi Toys, o desenho dos brinquedos era em bruto, havendo até uma colecção que se resumia à carcaça do automóvel em questão, sem destaque das portas ou dos faróis e sem vidros nas janelas.

 De 1960 em diante

Quase todas as marcas que mencionei anteriormente referiam-se a brinquedos surgidos ou logo no início do século 1900 ou dentro dos vinte anos posteriores. A I e a II Grande Guerra passaram, deixaram a sua marca e o tempo fez com que deixasse de ser quase uma blasfémia voltar a brincar às guerras tal como acontecera com os históricos soldadinhos de chumbo. A Airfix apareceu não apenas com soldados em miniatura, de plástico, preparados para serem pintados pelos miúdos que os compravam, mas também com aquilo que se chamou o plastimodelismo, ou seja modelos em plástico, como se está mesmo a ver, vendidos às peças em caixas com as instruções para montar tanques, navios, caças e bombardeiros de guerra. Também houve uma fase na qual os antigos galeões e caravelas estiveram na moda. No fundo as crianças eram obrigadas a trabalhar (se me permitem o termo) até poderem brincar definitivamente com os seus exércitos completos e devidamente coloridos. Por outro lado, surgiu o fenómeno do herói solitário, o Action Man. Apesar de ter começado a ser comercializado no Reino Unido a partir de 1966, a personagem era protagonista de uma série americana chamada G.I. Joe. O Action Man terá sido o mais parecido que se inventou para pôr os rapazes a brincar com bonecas sem beliscar a sua masculinidade. Tal como as Barbies (a Barbie nasceu em 1959) traziam fardas ou disfarces e eram vestidos e despidos ao sabor do freguês, havendo por isso fatos avulsos que podiam mandar o Action-Man para a guerra, para apagar fogos como bombeiros, para jogar futebol (embora nesse campo o Subbuteo tenha sido imbatível) ou para conduzir automóveis de corrida. Longe vão os tempos em que os brinquedos puxavam a miudagem para a brincadeira colectiva. Muito antes de ter acesso a um Subbuteo e nos intervalos nos jogos do berlinde (sempre de olhos nos pilha-galinhas que tinham abafadores), do peão ou do mundo (à custa de um canivete ia-se cortando um círculo aos pedaços, roubando a maior parte possível aos adversários, o que fazia dele um jogo de estratégia avant la lettre), fazíamos carrinhos de rolamentos e corridas guiadas à força da corda e de joelhos e cotovelos esfolados. Muito antes sequer de ter acesso a um Futebol de Mesa (versão moderna do futebol de botão), colávamos a cara dos jogadores dos cromos na parte de dentro das caricas de Canada Dry, de Buçaquina ou de Laranjina C, construíamos equipas que se batiam por uma bolinha dura de miolo de pão. E antes disso, uma simples tábua em rectângulo, com cinco pregos por equipa e tapada a toda a volta menos nas aberturas que serviam de balizas valia pelejas duras – cada um se defendia e atacava com um lápis. Não. Não éramos bois a olhar para palácios. Mas puxávamos pela imaginação. E, para satisfação absoluta, aos fins de semana metia-me no eléctrico e ia de Campo de Ourique à Baixa para ficar de boca aberta como um pacóvio a olhar para os comboios eléctricos da Märklín.