Mas porque não?

Alegam que o Chega é racista, xenófobo e anti-democrático, pelo que a sua presença no Governo faria a nossa democracia correr grande perigo. Tudo isto não passa de uma especulação estúpida. Nunca ouvi André Ventura pronunciar uma frase, ou um começo de frase que pusesse em causa o regime democrático que nos rege. 

por Maria de Fátima Bonifácio
Historiadora

Há muito se tornou evidente que a perspectiva de o PSD vir a ter uma maioria absoluta nos próximos meses não passa de uma miragem fugidia. Luís Montenegro, se quiser chegar a primeiro-ministro, não tem mesmo outro remédio senão coligar-se com alguém. Afora esta realidade, tudo o mais é wishful thinking. Nos últimos tempos, muito acossado pela comunicação social, o líder do PSD acabou por se ver obrigado a prometer que jamais faria uma coligação com o Chega. O Chega tem peçonha. Alternativamente, Montenegro foi há dias fotografado a almoçar com Rui Rocha, presidente da Iniciativa Liberal. Mas a IL não é alternativa. É um partido inconsistente, com muitas lutas intestinas, muitas demissões e substituições, que não oferece confiança para servir de sustentáculo parlamentar a um PSD hipoteticamente no poder. O PAN não existe e o Livre também não. Resta, portanto, o famigerado Chega.

Em primeiro lugar, muitos e muitos portugueses não o acham famigerado. Nas eleições de 2022, aumentou a sua representação parlamentar para doze deputados, com 7,3 por cento dos votos. Tornou-se, inequivocamente, o terceiro maior partido português, atrás do PS e do PSD. Recentes sondagens sugerem que o Chega poderá, em futuras eleições, duplicar o seu score eleitoral. Tornou-se, portanto, num parceiro inevitável, muito provavelmente com representação governativa ou, dependendo da performance do PSD, com um acordo de incidência parlamentar.

Esta perspectiva é olhada com horror pelo Partido Socialista e os seus ex-parceiros de ‘geringonça’, o Bloco e o PCP, ou seja, pelo centro-esquerda e pela extrema esquerda. Mas com que autoridade política e moral? Alegam que o Chega é racista, xenófobo e anti-democrático, pelo que a sua presença no Governo faria a nossa democracia correr grande perigo. Tudo isto não passa de uma especulação estúpida. Nunca ouvi André Ventura pronunciar uma frase, ou um começo de frase que pusesse em causa o regime democrático que nos rege. Em contrapartida, lembro-me bem de Álvaro Cunhal ter afirmado com convicção e regozijo que nunca haveria uma democracia burguesa em Portugal…

E aqui está o cerne da questão. O Bloco, é claro, fiel às suas origens trotsquistas, é anti-europeu e anti-NATO. O mesmo é dizer que é contra a democracia liberal, pois a Europa e a NATO são os seus mais firmes esteios. O que significa que o facto de ir a jogo num regime de representação indirecta – a tal democracia burguesa – não passa de uma farsa cínica. Ainda pior me parece o caso do PCP, agarrado ao estalinismo, 22 anos depois da dissolução da União Soviética e da queda do muro de Berlim em 1989. O PCP despreza a democracia burguesa, sonha com uma ditadura de partido único, vive no passado e, como o presente não passa de um soluço da História, o seu futuro é um regresso ao passado, quando a URSS era uma potência. O PCP é também anti-europeu e comunista, e só por oportunismo colabora, de má fé, com a nossa democracia. Para quem ache que eu exagero, basta ver, na presente guerra, o alinhamento do PCP ao lado da Rússia e contra a Ucrânia. A Rússia já não é a União Soviética, mas se o desígnio imperial de Putin prevalecer, pode ainda renascer das cinzas a pátria da Revolução e dos trabalhadores: voltarão os amanhãs que cantam.

Pois foi com uma aliança parlamentar entre o PS e estes dois partidos – ambos contra a propriedade privada e o mercado livre, ambos contra a Europa e a NATO – que nós tivemos de aguentar durante vários anos, de Novembro de 2015 a Outubro de 2020. Foram anos de investimento público quase nulo, graças às sábias cativações do ministro das Finanças. Seja como for: o país degradou-se por não terem sido acautelados os investimentos indispensáveis no SNS, na ferrovia, na Justiça, no ensino, para não mencionar o sempre adiado aeroporto de Lisboa.

O Chega não ameaça a democracia portuguesa, e não vejo porque seria chocante uma aliança com o PSD. Ideologicamente, está muito mais próximo do regime democrático do que os parceiros da nossa ‘geringonça’. Dirão que estou a normalizar o Chega: mas porque não?

Artigo escrito a 11 de maio