Caminhava o pequeno Joe por uma rua de Filadélfia, aproveitando umas partículas de sol que surgiam no meio das nuvens, assobiando desafinado e com as mãos enfiadas num par de bolsos onde só havia cotão, quando, inesperadamente esbarrou com um homem que vinha em sentido lambendo um gelado de morango. Bem, talvez não fosse de morango, o morango sou eu a supor para explicar porque é que o sujeito ficou furioso com Joe: tinha a camisa branca manchada e se o gelado fosse, por exemplo, de limão, a mancha não pareceria tão preocupante. Mas, enfim, despachemos o assunto do gelado, também podia ser de chocolate, se quiserem, chocolate dá uma nódoa dos diachos, uma nódoa capaz de fazer o homem perder as estribeira e querer moer o pequeno Joe de pancada. Joe era um miúdo rápido. Deu de sola por entre os outros transeuntes com o furibundo fulano atrás dele como se fosse um rinoceronte, saltou de passeio para passeio, entrou num beco e abriu de rompante a porta de um ginásio que lhe surgiu pela frente. Com os bofes de fora, o perseguidor ficara dobrado sobre si mesmo com as mãos nos joelhos e a nódoa do gelado de morango espalhada pelo peitilho da camisa acabada de engomar. Os anos passaram e Joe, que passou de pequeno Joe a Joe Harris, The Gipsy, adorava contar esse episódio da sua vida. Sentia que fora nessa tarde abúlica de Filadélfia que o boxe entrou na sua vida de forma definitiva: «‘I escaped into a gym, and from then on it was my life!».
Há vidas piores, pensarão alguns para com os seus botões, mas a vida de Joe Harris nunca foi um mar de rosas e não começou a sê-lo só porque se escondeu de um calmeirão enraivecido nas traseiras de um ringue. Claro que, tal como ele disse, o ginásio mudou-lhe a existência e deixou de andar à toa pelas ruas da sua cidade para se dedicar ao boxe, tendo sido um dos boxeurs mais temidos da década de 60. Vendo bem entrou em 24 combates e ganhou-os todos. Depois perdeu o vigésimo quinto, tal e qual o general de Bertolt Brecht que também ganhou todas as batalhas exceto a última. Joe ficou deveras abatido após a derrota. Não se sentia bem, a cabeça explodia-lhe de enxaquecas, viu-se obrigado a sujeitar-se a uma série de exames por mais que barafustasse dizendo que não havia nada de errado com ele. Havia pois.
Joe Harris tinha 22 anos quando recebeu uma carta muito pouco agradável. A Pennsylvania State Athletic Commission revogou-lhe a licença para combater sob o pretexto de ser um perigo para os adversários e para si próprio. Foi desesperante para The Gipsy, uma alcunha que se lhe colou à pele a despeito de não ter uma gota de sangue cigano mas acabando por se transformar em mais um deles.
O problema de Joe era antigo e foi preciso queEmile Griffith o tenha deixado em bastante mau estado num combate a 6 de agosto de 1968, na Spectrum Arena de Filadélfia para que os exames posteriores indicassem que o seu olho direito estava irremediavelmente cego. E ficara assim por causa de uma rixa de miúdos de rua quando lhe acertaram na cabeça com um tijolo. Apesar de 50% cego, Joe lutou e ganhou. Mas era o fim. Nunca mais o deixariam combater.
Novos tempos complicados surgiram na vida de Joe Harris. Aproveitou o facto de ser alcunhado de Cigano para fazer umas palhaçadas para entreter os pacóvios. Passou a usar uns guizos nos calcanhares das botas de firma a que toda a gente ficasse a saber quando estava para chegar uns segundos antes de lhe verem a cara inchada e se deixarem impressionar pelo olho afetado que acabou por ficar absolutamente baço. Resumia-se: «I don’t make plans. I just fight. The guys I fight don’t know what I’m gonna do next, because I don’t know what I’m doing».
Joe Harris foi, durante a sua carreira, frequentemente comparado a Mohammad Ali. Era um provocador por natureza e largava umas tiradas envoltas num sentido de humor muito particular. Gostava de se vestir à cowboy, com botas pontiagudas, calças Wrangler muito estreitas e um cinto largo de couro com vacas em relevo não escondendo a sua barriga proeminente. As suas fãs gritava-lhe, passasse por onde passasse: «You’re sweetter than Sugar», pondo Sugar Ray Robinson ao barulho. «Quis sempre ser diferente», contou numa entrevista. «Por isso resolvi rapar o cabelo por completo. Quando me acertarem na cabeça as luvas vão escorregar, tão lisa é. Mas se alguém aparecer de cabeça rapada num ringue deixo logo crescer o cabelo». Joe Harris, The Gipsy, era conhecido em todos os bares de The Jungle, o bairro negro de Filadélfia. Às vezes perguntavam-lhe: «Onde gastaste todo o teu dinheiro Joe?» E ele: «Não sei. O dinheiro vai-se…». Pelo caminho os elogios femininos mudaram: «You’re sweetter than wine, Joe!». Mal ele preferia bourbon tal como, segundo Howard Hawks, os homens preferem as louras.
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