O trevo das cinco folhas

Pela primeira vez um negro vestiu a camisola laranja da Holanda – Humphrey Mijnals até foi apanhado por um fotógrafo num pontapé de bicicleta.

De Paramaribo a Georgetown podem ser 450 quilómetros de estrada, com a travessia de barco do rio Barbice pelo meio (cerca de 20 minutos), mas são baldes de suor tanta a humidade das florestas. A meu lado, Ramdas conduz com serenidade não se deixando apanhar pelas armadilhas dos buracos no alcatrão e soltando um gritinho «Políííce!». de cada vez que vislumbra, ao longe, as luzes azuis de uma brigada. Depois ri-se muito. Quando o mandam parar exibe a sua credencial de motorista e ninguém o aborrece. Não fico com dúvidas de que sente uma certa vaidade embora ele não a exiba. De súbito, dois vultos brancos passam pela frente da vidraça suja. Voam num bailado alvo enquanto soltam gritos que têm um toque de aflição mas não passam de mensagens de encantamento. Recordo-me de quando, no tempo de menino, no jardim da Casa das Conchas, no lugar do Olival, a minha avó Manuela me falava das duas catatuas brancas que tinha tido e que se mantinham carinhosamente empoleiradas nos seus ombros. Neste lugar do mundo há mais pássaros negros do que brancos. No fundo, tal como os homens. As catatuas foram uma visão quase sobrenatural e desapareceram em segundos pelo meio da folhagem densa. O grito delas ficou-me nos ouvidos. Em eco.

A infância dos irmãos Mijnals, Frank e Humphrey foi passada a sul do lugar que percorremos a nunca mais de 70 km por hora: Moengo, a terra dos maroons, os escravos africanos fugitivos que procuravam a liberdade por entre teias cerradas de lianas que brotam das banianas e descem até ao solo para se transformarem em raízes de si próprias. Maroon vem de marron, a palavra francesa para castanho, a palavra desprezível para que o senhor classificasse a sua propriedade bípede. Um dia, o pai Louis cansou-se de carregar com toros de madeira e foi tentar ser jogador de futebol em Lanti Jari, no Sranantongo, lugar onde três visionários, Frits Juda, J. Sleur e Walther Sleur, criaram uma academia de formação de jogadores. Estávamos em 1946. Até 1950 foi aí que se organizaram os jogos mais importantes do Suriname. O local ficou conhecido por Mr. Bronsplein em homenagem ao Governador do Suriname, ao tempo colónia holandesa, Johannes Cornelis Brons. Louis manifestou o seu talento no Remo. Em seguida foi chamado para jogar no clube dos campeões: o Robinhood.

 

Louis tem a fama de ter sido um bom jogador. Mas não vale a pena procurar encontrá-lo nas enciclopédias. O futebol da selva sobrevive em histórias que se fazem lendas, nada mais. Nunca passou pela cabeça de Louis que poderia vir um dia a jogar na Europa. Ou se passou foi enquanto dormia e sonhava com milagres. Depois passou a sonhar a sério à medida que tomava conta do treino dos seus filhos em Mr. Bronbsplein. Humphrey August Mijnals, o mais velho, também passou pelo Remo. E pelo Gompers. Depois seguiu o seu destino e vestiu a camisola do Robinhood entre 1950 e 1955. Defesa central preponderante, marcou uma era. Recebeu o convite para treinar nos brasileiros do América de Recife, Pernambuco. Ficou seis meses. Depois, como nos filmes, a fantasia tornou-se realidade e o Robinhood vendeu-o aos holandeses do Elinkjwick, de Utrecht.

Neste momento o Elinkjwick vagueia como um barco abandonado na II divisão holandesa. Em 1956 descobriu o Suriname. De uma vez só levou cinco jogadores: além de Humphrey, o seu irmão mais novo Frank, avançado centro, e Erwin Sparendam, Michel Kruin e Charley Marbach. Ficaram conhecidos pelo Trevo das Cinco Folhas! Só Humphrey custou três mil florins. E recebeu como prémio de assinatura quinze mil dólares. Era algo de inimaginável. Muitos criticaram o negócio considerando uma loucura apostar dinheiro em meia equipa que não fazia ideia de como era sequer o futebol da Europa. No dia 3 de abril de 1960, a Holanda recebeu a Bulgária. O resultado ficou em 4-2 a favor dos holandeses. Mas a lenda passou a realidade quando um maroon vestiu pela primeira vez a camisola laranja. Humphrey aproveitou bem a sua estreia e foi intratável. Minna, como era alcunhado, chegou ao cúmulo de evitar um golo na sua baliza através de um pontapé de bicicleta perfeito que, ainda por cima, foi captado pela câmara de um fotógrafo no momento exato de atirar a bola para longe. Depois ainda jogou mais dois encontros pela Holanda, o último dos quais contra o Suriname. Já tinha estatuto para tocar na ferida e não teve medo que ela infetasse: levantou a voz contra a descriminação que os clubes holandeses faziam em relação aos jogadores surinameses. Pagou o custo da rebeldia. Aquele que é considerado o melhor jogador de todos os tempos do Suriname desapareceu de cena. Desfez-se aos poucos num futebol inferior. Como uma estrela que tenta brilhar a custo num céu negro de nuvens.