O Pacote Mais Habitação, Menos Alojamento Local e Alegria Entre os Condóminos

O Governo não podia tolerar que a ascensão social de milhares de portugueses que obtinham rendimentos e ordenados resultantes do Alojamento Local os libertasse da dependência estatal.

Inserida numa proposta de alteração feita pelo Partido Socialista ao pacote Mais Habitação, os novos registos de Alojamento Local (AL) em prédios de habitação passarão a necessitar do visto prévio, unânime, do condomínio. Sendo já exigido para o funcionamento de hostels em edifícios residenciais, este requisito será doravante aplicado à generalidade de modalidades de AL independentemente de o imóvel se situar ou não numa zona de pressão urbanística.

Para o Governo, trata-se de uma medida para regular uma atividade económica que tem em consideração a opinião dos moradores sobre os prédios onde habitam. Para os empresários do setor, a medida destina-se a acabar com Alojamento Local, escondendo-se o Governo atrás dos condóminos que farão o trabalho sujo por ele. A oposição de Direita, critica o Governo. A oposição de Esquerda, pede mais cadeados no AL.

Contudo, as verdadeiras razões da medida do Governo são outras.

A primeira é de índole humanista e vai resolver um problema comunitário que existe desde que os romanos inventaram a Insula – uma habitação coletiva destinada aos plebeus (os patrícios viviam em Domus e Vilas sem condóminos, não tendo esses problemas). Ora desde o tempo das Insulas romanas que os moradores de um prédio se desentendem por tudo e por nada. As obras de reabilitação do prédio, a limpeza dos espaços comuns, a responsabilidade por uma infiltração de água, a proveniência de um fedor nauseabundo, as horas em que se pode fazer ruído, o direito a assar sardinhas na varanda, levar prostitutas para casa, ter ou não ter cão, e outras questões problemáticas. Por isso, além de se arrastarem durante horas, as reuniões de condóminos transformam-se facilmente numa berraria de tresloucados que por vezes descamba em combates de gladiadores romanos. Mas, com esta medida, tudo irá mudar. Pela primeira vez em mais de dois mil anos de desentendimento entre condóminos vai haver acordo, unanimidade e a desejada paz nos prédios.

Vizinhos que durante anos não se cumprimentavam nos elevadores e que não perdiam uma oportunidade para se tramarem mutuamente, farão as pazes e, todos juntos, dirão: Não ao Alojamento Local no nosso prédio!

A melhor forma de unir os portugueses é convencê-los de que têm pela frente um inimigo comum. Se tiverem de se unir a favor de algo – por exemplo, a liberdade de expressão –, há sempre alguém que se desmobiliza porque há um jogo de futebol, porque tem de ir para a praia, ou porque o assunto não lhe interessa minimamente. Porém, ante uma potencial ou imaginária ameaça – por exemplo, proibir o AL ou a liberdade de expressão –, eis que por magia todos se unem e se lançam furiosos contra o inimigo.

O grande mérito do Governo é saber explorar esta psicologia de massas lusitana cujas origens remontam à resistência de Viriato contra o invasor romano. Desde então, os povos que habitam o nosso território confrontaram-se com sucessivos inimigos: os referidos romanos, os árabes, os castelhanos, os franceses, os ingleses, os fascistas, os ricos, a troika, o regresso da extrema-direita, e agora o Alojamento Local.

E eis a segunda razão da medida do Governo.

Se o proprietário de um apartamento não pode aceitar que o vizinho do lado tenha o dobro ou o triplo do seu rendimento apenas porque aluga a casa a turistas, o Governo tão pouco pode tolerar que reabilitação das cidades portuguesas seja creditada aos empresários do AL que fizeram o restauro dos seus imóveis sem pedir apoio ao Estado. Incapaz de gerir os fundos europeus e atafulhado na própria burocracia, o Governo viu-se ultrapassado pela iniciativa privada na reabilitação urbana. Ora como isto gerou aumento do turismo e consequente aumento da riqueza, torna-se óbvio para o mais distraído dos cidadãos que o crescimento económico deve-se apenas à iniciativa privada.

O Governo não podia tolerar isto, assim como não podia tolerar que a ascensão social de milhares de portugueses que obtinham rendimentos e ordenados resultantes do Alojamento Local os libertasse da dependência estatal. O fundo de desemprego é a melhor das campanhas eleitorais. A independência financeira gera desvios cognitivos liberais. Por isso, incapaz de decepar as sete cabeças da Hidra do AL, o Governo recorreu aos Hércules dos condomínios.

E eis o pacote Mais Habitação, Menos Alojamento Local e Alegria Entre os Condóminos.