Recordo-me de estar com o meu pai na sala de casa dos meus avós, na rua Francisco Metrass, em Campo de Ourique, a ver o Brasil-Zaire do Mundial da Alemanha, em 1974. Um Brasil mazombo e bisonho, ainda com Rivelino e Jairzinho, mas que envergonhava a equipa que quatro anos antes se tornara na melhor de todos os tempos. Fui ver a data. 22 de junho. De repente foi como estivéssemos a assistir a um filme do Pamplinas. Livre direto contra o Zaire, Rivelino preparado para tomar balanço e desferir o seu habitual tiro de canhoneira. O árbitro romeno, Nicolae Reinea, apitou autorizando a marcação e, como louco, um dos jogadores zairenses saiu da barreira num sprint e pontapeou a bola para longe. Foi tão grotesco que o riso demorou a vir. Foi como se ele estivesse convencido de que, depois do apito, o jogador que chegasse primeiro à bola tinha direito a ela. Até aí, Joseph Mwepu Ilunga era mais um dos exóticos negros do antigo Congo Belga, primeira seleção da África subsariana a surgir na fase final de um Campeonato do Mundo. Depois do gesto destemperado todos quiseram saber o seu nome. O defesa do Englebert TP Mazembe, nascido em Kinshasa no dia 22 de agosto de 1949, atravessou o túnel escuro da vergonha. Foi motivo de chacota um pouco por toda a parte e, embora ainda não fosse o tempo da propagação momentânea das imagens, a repetição do lance andou por aí a rodar o mundo como demonstração inequívoca que as gentes da África Negra nem sequer sabiam as regras fundamentais do jogo inventado pelos ingleses. Atónitos, os jogadores brasileiro pediam explicações. Ilunga regressou à companhia dos seus camaradas da defesa zairense. O árbitro, também confuso, mostrou-lhe o cartão amarelo. Estavam decorridos 78 minutos da partida, no minuto seguinte Valdomiro fez o 3-0 final. Ninguém sabia, mas os moços do Zaire suspiraram de alívio. Os Leopardos, treinados por um jugoslavo, Blagoge Vidinic, tinham nas bancadas do Waldstadion de Gelsenkirchen uma enorme delegação de políticos que o presidente Mobutu Sese Seko Kuku Ngbendu Wa Za Banga tinha enviado como seus lídimos representantes. Mobutu foi um carniceiro sem escrúpulos e um cavalo com arções – imagine-se o nível da sua entourage… Os jogadores tinham sido avisados na véspera que qualquer goleada acima dos quatro golos valeria um castigo exemplar para eles e para os seus familiares. Viviam dias de terror. Não se brincava com a paciência do marechal Mobutu sem sofrer consequências equivalentes ao seu cérebro caliginoso.
Apesar da alegria com que os zairenses chegaram à Alemanha, a derrota inicial frente à Escócia por 0-2 arrastou-os para um pesadelo. Vá lá saber-se porque razão, Mobutu tinha escasquinado que a presença do Zaire no Mundial seria coroada de sucessos. Foi para transmitir isso à equipa que convidou toda a gente para uma festa de arromba no seu palácio na véspera da viagem para a Europa.
O resultado não fora nem humilhante nem inesperado. Mas trouxe consigo de arrasto a ira presidencial exposta in loco por aquele grupelho numeroso de políticos bacocos que se pavoneavam pelo hotel da equipa como se fossem mais importantes do que os jogadores. Foi transmitido ao grupo que já não iria receber o prémio monetário prometido pela qualificação. O dinheiro foi até à Alemanha nos bolsos dos dirigentes e não saiu deles. Uma revolta surda alimentava-se da raiva coletiva da equipa. No jogo seguinte, frente à Jugoslávia, aos 18 minutos já o Zaire perdia por 0-3. Vidinic decidiu culpar o guarda-redes titular Mwamba Kazadi pela entrada em falso da seleção. Tirou-o de campo e fez entrar o suplente, Dimbi Tubinandu. O gesto serviu para piorar o ambiente e para fragilizar o conjunto. No final do jogo, os 9-0 aplicados pelos jugoslavos exacerbaram a fúria do canalha Mobutu que, em Portugal, ficou mais conhecido por ter deixado um Boing 707 estacionado durante 15 anos no aeroporto da Portela do que pelas suas atrocidades.
Nenhum dos jogadores do Zaire queria continuar a disputar o Mundial. Estavam entregues a si próprios, sem dinheiro e escambulhados pela derrota. Foi preciso a FIFA tomar uma medida drástica e pagar a cada um deles cerca de três mil marcos para que voltassem a entrar em campo. Mas Mwepu Ilunga conseguira o estatuto de estrela. No final do jogo frente ao Brasil foi engolido por um mar de microfones. E falou: «Fomos avisados por um dos generais do presidente que nova goleada nos iria impedir de regressar a casa!» E explicou-se: «Conheço muito bem as leis do jogo. Fiz aquilo que fiz para confundir os brasileiros e tentar que o tempo perdido nos impedisse de sofrer mais golos». Mais tarde acrescentaria que contava ver o cartão vermelho e, com isso, dar uma imagem de insurreição contra o poder político. Acho que ainda hoje ninguém acredita em Mwepu.
afonso.melo@newsplex.pt