Os príncipes da manguaça

Uma equipa de bêbados teria a enorme vantagem de esquecer na manhã seguinte a cabazada que tivesse apanhado na véspera.

Por Afonso de Melo

Manguaça é uma palavra feia. Não esteticamente feia, para isso há outras bem piores como pabibaquígrafo, tricobezoares, filaucioso ou defecação, mas feia no seu significado um tanto ou quanto miserável: basicamente aplica-se a um borrachão que passa a vida no estado semi-vegetativo daqueles que bebem só por beber, sem prazer e sem sede, com o único objetivo de se tornarem os cachaceiros da família. Não me ficaria bem negar os efeitos que o álcool e os seus derivados tiveram em muita da minha escrita, mas também ninguém anda aí na rua a apontar-me com um sorriso travesso e a dizer entre dentes: «Lá vai o manguaça de Águeda!», ou qualquer coisa equiparavelmente maçadora. Tenho uma admiração muito razoável por quem não tem medo de se assumir como um piancho, ou por um beberrão, desde que o seu estado de alcoolemia não o faça mergulhar no terreno pantanoso da conversa que parece um cão a querer apanhar a própria cauda e, como se a apanhasse, soubesse lá o que fazer com ela. Não é fácil suportar de boa catadura um mamífero com a bocarra a exalar refluxos etílicos mesmo em frente à nossa pituitária. Certa madrugada, em São Tomé, fui com o meu amigo José Fernando de Almeida a uma discoteca que ficava logo ao lado da casa onde ele então vivia. Estava ao balcão a pedir uma cerveja e fui autêntica vítima da curiosidade de um fulano que não conseguia guardar as suas flatulências para si próprio. O seu hálito tinha algo de pavoroso, entre a cebola e a cachaça, e não fui capaz de conter as lágrimas perante a acidez bucal do bicho que, confundindo os meus sentimentos, se agarrou ainda mais na tentativa de consolar-me e fazer sentir-me melhor não se desse o caso de estar eu com saudades de casa. A experiência foi tão forte que ainda a recordo como se fosse hoje. Aliás, os meus olhos acabam de humedecer e podem estar certos que não movidos por qualquer sentimento de nostalgia.
 
Manguaça é alcunha para um grande bêbado mas é, também, nome de bebida. Hemingway, que tinha a sua muito razoável quantidade de destilados diários, disse que a civilização começou com a destilação, algo que deixei de poder afirmar com propriedade quando passei a resumir os meus consumos de álcool à cerveja e ao vinho. Agora vejo tudo mais claramente, sobretudo à noite quando a escuridão se misturava com uma nuvem ligeira de vapores. Enfim, era aqui que eu queria chegar: há muito boa gente que assume com agrado as suas incómodas alcunhas. Como aquele personagem de Dumas – pai ou filho, para o caso pouco importa – que gritava na direção de todos os pontos cardeais: «Um não só um filho da puta! Eu sou o príncipe dos filhos da puta!». Valente animal!
 
No dia em que descobri que havia um tal de Manguaça Futebol Clube no Rio de Janeiro confesso que me deixar encantar pelo descaramento. Ela por ela seria como ter os Borrachos Futebol Clube, os Embriagados Futebol Clube, os Ébrios Futebol Clube e por aí fora. Todos de peito inchado (provavelmente após uns vómitos nos balneários), orgulhosos da sua capacidade em encher a cabeça de cachaça ou de aguardente, ou ainda melhor, de manguaça. O clube é totalmente amador mas gaba-se de organizar festas e acampamentos para as equipas de juniores e juvenis, vá lá saber-se se regadas à dita manguaça, esperemos que não, mas sinceramente não ponho as mãos no fogo.
Acrescente-se que os adversários do Manguaça têm, igualmente, nomes bastante exóticos. Numa busca feita por entre teclas deparei rapidamente com uma partida espetacular entre o Manguaça e o Tô Zuando, com vitória dos primeiros por 5-3. Tô Zuando Futebol Clube!? Ora cachaça! Dá para imaginar a forma como sobem ao relvado, todos apoiando-se uns nos outros e tropeçando na bola de cada vez que tentam fazer um passe terminando o lance com um sonoro arroto.

Nos quadros do Manguaça joga gente de nomes finíssimos como seja Alan Francisco Rocha (o Di María), Aldair Soares dos Santos (o Neymar), Allan da Silva (o Chuta Chuta), Paiva Nortada (o Kaká), Santaroni Bezerra (o Santashow), Nascimento Cordeiro (o Peitão) ou Ribeiro da Silva (o Maradona). Claro que ficamos desconfiados: serão todos uns pinguços catedráticos, abrindo as hostilidade dos pequenos-almoços com uma caipirinha? Eis um daqueles mistérios fascinantes do futebol. Há que reconhecer que uma equipa formada por alcoólatras tem uma enorme vantagem sobre todos os seus adversários: mesmo quando perdem feio, por uma cabazada, no dia seguinte já nem se lembram. Ou pelo menos estão com tamanha ressaca que nem querem pensar no assunto.

afonso.melo@newsplex.pt