Nelson Rodrigues, o cronista incontornável, disse dele: «Não atava as chuteiras com cordões, mas com as veias». Veias abertas de América Latina, escreveria, por sua vez, Osvaldo Soriano. Poucos jogadores na história do futebol terão sido tão bem contados como Obdulio Jacinto Muiños Varela. Ou apenas Obdulio Verela, El Grán Capitán. Ou El Jefe Negro.
Sim, tinha pele escura mas estava longe de ser retinto como baquelite. Era apenas moreno como os cholos que se espalhavam de Entre Rios ao Rio Grande do Sul, charruas, guaranis ou minuanos. Mas foi sempre uma figura impressionante, digna de figurar num livro de Salgari, como, por exemplo, O Tesouro do Presidente do Paraguai, de 1894, publicado cinquenta e seis anos antes de Obdulio invadir o Brasil e provocar aquilo que Nelson Rodrigues apelidou de «A nossa Hiroxima». 16 de julho de 1950. José Lins do Rego: «Vi um povo de cabeça baixa, de lágrimas nos olhos, sem fala, abandonar o estádio como se voltasse do enterro de um pai muito amado. Vi um povo derrotado, e mais que derrotado, sem esperança». Para a seleção canarinha, um empate bastava para conquistar, pela primeira vez, a Taça Jules Rimet – a Taça do Mundo. Mas nem ao empate chegou. O Uruguai venceu por 2-1 num estádio a rebentar com mais de 200 mil pessoas. Obdúlio Varela, capitão uruguaio, recebeu o troféu no meio do relvado tal a confusão que trepava pelas bancadas. Era um Homem e um Desportista. A sua figura destacava-se como a estátua de um Fídias. A sua voz era calma, grossa, sem esconder um pingo íntimo de pena: «Não gostei de ver aqueles 200 mil torcedores tristes; não gostei de ver o Rio às escuras e sem carnaval. É a vida. Era campeão e não sentia uma total alegria pelo feito». El Jefe Negro não precisou das palavras alheias para atingir o topo de todos os topos. Escreveu-se a si mesmo. Fez ouvir as sua tiradas contidas e pensadas que não pareciam vindas da mesma pessoa que, em campo, se batia como um exército de um soldado solitário. Quando perguntaram ao defesa uruguaio Diego Lugano se era verdade que, quando miúdo, imitava Obdulio nos jogos de rua, ele respondeu simplesmente: «Ninguém pode brincar de ser Deus».
Voltemos ao início e a Nelson Rodrigues: «A humilhação de 50, jamais cicatrizada, ainda pinga sangue. Todo escrete tem sua fera. Naquela ocasião, a fera estava do outro lado e chamava-se Obdulio Varela». Obdulio nasceu pobre e asmático, no humilde bairro de La Teja, em Montevidéu, filho de um galego que só mais tarde o reconheceu como filho. Cresceu na rua Pablo Pérez, na Curva de la Industria. Foi criado com os pais separados e, por causa disso, usava o sobrenome materno de Varela, e não o paterno de Muiños. Às vezes um nome muda a história de um homem, quando não muda a história do mundo.
O Brasil acabara de fazer 1-0 por Friaça. Ninguém acreditava que essa taça iria fugir das mãos dos brasileiros. Só Obdulio: «Agora sim, vamos ganhar!». Os companheiros olhavam para ele, fascinados. E depois há aquela cena dramaticamente cinematográfica: «Obdulio, un morocho tallado sobre piedra, fue hacia su arco vencido, levantó la pelota en silencio y la guardó entre el brazo derecho y el cuerpo. Los brasileños ardían de júbilo y pedían más goles. Y clavó sus ojos pardos, negros, blancos, brillantes, contra tanta luz, e irguió su torso cuadrado, y caminó apenas moviendo los pies, desafiante, sin una palabra para nadie y el mundo tuvo que esperarlo tres minutos para que llegara al medio de la cancha y espetara al juez diez palabras en incomprensible castellano. No tuvo oído para los brasileños que lo insultaban porque comprendían su maniobra genial: Obdulio enfriaba los ánimos, ponía distancia entre el gol y la reanudación para que, desde entonces, el partido – y el rival -, fueran otros». Não precisa de tradução. É Osvaldo Soriano descrevendo a revolta de Obdulio em Artistas, Locos y Criminales. E El Grán Capitán respondia: «Eu não represento nada. Tudo o que se diga são mentiras. Sou uma pessoa como qualquer outra e a única coisa que me resta é a satisfação de ter cumprido. A glória não existe. A glória é ter amigos que gostem de ti. Foi uma casualidade termos roubado o título do Brasil. Coisas assim acontecem só uma vez». É frustrante erguer um herói que recusa o plinto das estátuas. Que recusa os elogios e se faz refém da humildade. Senhor do Peñarol, nunca deixou esquecer a forma como os negros foram correndo como o sangue das veias abertas da América Latina: «Antes, nós, os negros, éramos puxados por uma argola no nariz. Esse tempo já passou». Carlos Heitor Cony, escritor brasileiro, foi mais concreto: «A partir de hoje deixei de acreditar em Deus!». Um Deus azul-celeste…