Mandela e os portugueses

Nelson Mandela estava na prisão há 25 anos quando recebeu o primeiro pedido de visita de portugueses. Veio dos socialistas João Soares e Caio Roque, que estavam na África do Sul com outros deputados de vários partidos para celebrar os 500 anos da passagem de Bartolomeu Dias pelo Cabo da Boa Esperança. Não conseguiram ver…

mandela tinha sido preso em 1962, o ano da crise académica em lisboa, quando uma carga policial sobre os alunos da universidade clássica levou à demissão do reitor, marcelo caetano. sairia da prisão já com a democracia consolidada em portugal, em 1990, meses antes de mário soares ser reeleito presidente da república.

josé pacheco pereira, ex-dirigente do psd, foi um dos primeiros cidadãos nacionais a encontrar-se com ele logo depois de sair da cadeia de robben island – a delegação social-democrata tentava estreitar relações entre a comunidade portuguesa residente na áfrica do sul e o anc. no dia da morte de mandela o comentador recordou à sic notícias o jantar que tiveram na cidade do cabo: “esta proximidade permitiu-me perceber que mandela não comia como uma pessoa normal. havia um ritmo e uma forma de comer que tinha a ver com a experiência prisional. isso era evidente nos seus gestos”.

a refeição, que sentou portugueses, quadros e o líder do anc à volta da mesma mesa, teve um final feliz. “mandela disse umas palavras muito simpáticas de apaziguamento em relação à comunidade portuguesa”, recordou pacheco pereira. e o jantar ajudou à normalização das relações com os militantes contra o apartheid, já que durante muitos anos o anc olhou com desconfiança para os portugueses residentes na áfrica do sul (na sua esmagadora maioria madeirenses emigrados nos anos 20 e 30), por estarem a favor do regime segregacionista do partido nacional que se conservou no poder entre 1948 e 1994.

“havia um grande cuidado no sentido de procurar não ter qualquer atitude que pudesse ser interpretada como ingerência interna na áfrica do sul”, reconhece, em declarações ao sol, o embaixador francisco seixas da costa.

“em vez de preparar a comunidade portuguesa para a transição, portugal encorajou-a a manter-se numa posição de defesa intransigente do regime”, escreveu o ex-secretário de estado da cooperação do ps, joão cravinho, num texto publicado no facebook, lembrando que esta comunidade acabou por ser “a única que não teve entre os seus membros lutadores contra o apartheid”. “as posições nacionais eram essencialmente ditadas por meia dúzia de ‘comendadores’ da comunidade portuguesa, fortemente apoiados por alberto joão jardim”, explica ainda.

horácio roque era um destes comendadores e chegou a tomar chá com mandela muitos anos depois. no final do encontro, o sul-africano falou de jardim e comentou as qualidades políticas do presidente do governo regional: “o maior estadista que conheci”. e deu a roque um livro autografado para lhe entregar. o episódio foi agora recordado pela directora do jornal o século de joanesburgo. “as conversas que tinha comigo revelavam um grande sentido de humor. perguntava-me sempre pelo nosso amigo, que era o filho do comendador horácio roque, e no fim abraçava-me e dizia-me: ‘diga-lhe que perguntei por ele’“, contou paula caetano.

mandela e alberto joão jardim encontraram-se três vezes: logo após a saída da prisão, enquanto presidente e depois de abandonar o cargo. jardim não integrava a comitiva portuguesa convidada para a tomada de posse: recebeu um convite directo de mandela.

para joe berardo, madeirense que fez fortuna na áfrica do sul, mandela “é o ser humano que mais se aproxima de deus”. “deixa um exemplo cultural e espiritual extraordinário. sem guerras e vaidades pessoais. a reconciliação que fez na áfrica do sul é uma obra notável. congregou sete raças e diferentes tribos”, disse ao sol.

com a morte do ex-presidente da áfrica do sul, o período distante que portugal e mandela viveram foi rapidamente resgatado. no parlamento, pcp e be recordaram um voto de portugal contra uma resolução da onu, em 1987, que pedia a libertação imediata de nelson mandela. cavaco silva, então primeiro-ministro, justificou a sua decisão da altura, dizendo que portugal se opunha ao recurso à “luta armada” por parte do anc e que votou a favor de muitas outras resoluções da onu contra o apartheid. e criticou os que “falam de cátedra” e que “nunca mexeram uma palha para tentar mudar a situação na áfrica do sul”.

a comunidade portuguesa, constituída sobretudo por madeirenses e por portugueses de moçambique e angola, era conservadora. ali ao lado, os cubanos estavam em angola, a guerra fria atingia o auge e o muro de berlim ainda não tinha caído. o voto de portugal na onu que à luz dos dias de hoje é polémico foi entendido com naturalidade pelos principais partidos políticos. “havia um alinhamento profundo com o reino unido” e portugal “foi sempre prudente com a áfrica do sul pelas mesmas razões que hoje também o é com a venezuela, a comunidade portuguesa emigrante”, explica seixas da costa.

uma das pessoas em portugal que, contra a corrente, mais cedo deram a mão ao anc foi ramalho eanes, que, em 1985 e enquanto presidente da república, recebeu no palácio de belém o líder daquele partido, oliver tambo, na altura considerado “terrorista” pelo regime norte-americano e assim titulado pelos jornais portugueses da época. “era um partido proscrito a funcionar na clandestinidade”, recordou na sic o ex-presidente, explicando, contudo, que acreditava numa mudança na áfrica do sul. e que achava que tal perspectiva deveria ser tida “em consideração até para proteger os muitos portugueses que ali viviam, gente simples, gente que se submetia ao poder e não o contestava, o que constituía para o anc um pecado. queria criar condições para que esse pecado não fosse pago mais tarde por essa gente”.

nos anos seguintes, nos bastidores, também cavaco silva, enquanto primeiro-ministro, e mário soares, enquanto presidente, fazem chegar ao então presidente da áfrica do sul pieter w. botha as suas preocupações sobre o regime do apartheid e a necessidade de libertar os presos políticos. na sua autobiografia política, cavaco conta que um encontro com botha, em 1988, “não correu nada bem” porque “o presidente exibiu uma postura de dureza e inflexibilidade e o meu diálogo com ele foi muito difícil”.

depois da saída de mandela da prisão e quando começam a florescer vários partidos políticos na áfrica do sul, a agulha na diplomacia de portugal já tinha mudado. quando chegam a lisboa informações de que, entre a comunidade portuguesa emigrante, estava a ser discutida a formação de uma espécie de ‘partido branco português’, o governo fez saber que não era aconselhável que os portugueses pusessem em causa a convivência multirracial.

em 1993, nelson mandela, apreciador de vinho do porto e conhecedor da obra de fernando pessoa (que viveu na áfrica do sul), visita portugal já como líder do anc e candidato às eleições presidenciais. “era um homem de uma bondade extraordinária e teve a coragem de, quando foi eleito presidente, ter convidado os guardas dele na prisão para o banquete que foi oferecido”, lembrou mário soares, que à data era presidente da república. durão barroso, então mne, recorda-se bem de, num encontro depois de sair da prisão, madiba lhe ter perguntado se podia contar com os portugueses para a construção de uma nova áfrica do sul.

joão soares acabaria por se encontrar com o sul-africano e apertou-lhe a mão na recepção oferecida por portugal no palácio da ajuda. terá sido apenas um minuto e meio de diálogo: “disse-lhe que sou das poucas pessoas para quem o nome do fundador do apartheid foi positivo. cheguei à áfrica do sul quase a morrer e saí do hospital hendrik verwoerd recuperado. ele riu-se”, recorda joão soares.

portugal, entretanto, ganha em nelson mandela um aliado pela causa da independência de timor-leste. em 1997, o sul-africano visita xanana na prisão, numa deslocação oficial que faz à indonésia. “interessou-se muito pela questão”, recorda o ex-presidente da república jorge sampaio, que classifica mandela como “um exemplo único” num continente “difícil” – a sua inspiração “tem de continuar”.

“toda a gente fala na capacidade de liderança e na importância do símbolo nelson mandela para o mundo, mas o que devíamos era reflectir sobre os valores que nos deixou, a capacidade de tolerância e diálogo, e pormos esses valores em prática. é a maior homenagem que lhe fazemos”, diz ao sol manuela eanes.

helena.pereira@sol.pt e ricardo.rego@sol.pt