Alcoutim: Bilhete postal desabitado

Alcoutim é o concelho português que perdeu mais habitantes nos últimos dez anos. Actualmente são menos de três mil as almas que habitam as 88 aldeias deste município paradisíaco à beira do Guadiana. O SOL foi ver como se vive no interior algarvio.

vaidosa é quem recebe os visitantes em corte tabelião, aldeia que perdeu praticamente toda a sua população nos últimos 20 anos. e este povoado, a uma dezenas de quilómetros da sede de concelho, alcoutim, mas a um mundo de distância, é um retrato do que se passa na região. todas as aldeias viram as suas gentes partir, «em busca da vida», como dirá um habitante ao sol.

no largo de corte tabelião, vaidosa, a cadela de raça pastor alentejano, faz questão de deixar bem claro que não está para brincadeiras e que tão-pouco vai deixar os forasteiros aproximarem-se da casa do casal cavaco.

ele, antónio mestre cavaco, homem grande de 90 anos, recebe o sol à lareira, que estes dias na serra do caldeirão são especialmente frios. ela, maria mestre cavaco, de 86, é quem abre a porta quando ouve o barulho do motor desconhecido aproximar-se e com ele o ladrar da cadela que faz companhia aos donos e oferece protecção contra visitas indesejadas. «a melhor amiga que um homem pode ter», garante antónio.

antónio cavaco nunca saiu desta aldeia, hoje praticamente deserta, mas que chegou a contar cem almas nos tempos da sua juventude. viu partir toda a gente em busca de oportunidades – incluindo a sua própria gente –, mas sempre se recusou a abandonar o lugar que amava e onde tinha nascido, no ano de 1922. «os meus três irmãos partiram em busca da vida», conta.

antónio é o mais antigo habitante do lugar, que hoje se parece mais com um monte do que com uma aldeia. conhece como ninguém os cantos e as histórias de corte tabelião – reza a lenda que a terra ganhou o nome de um tabelião que aqui construiu casa e cavalariça.

«antigamente, isto estava cheio de casais que aqui faziam a vida, e aqui tinham os filhos», conta o ancião. «nesse tempo vivia-se do que dava a terra: frutos secos como amêndoas, figos e romãs». mas com o tempo deixou de haver compradores e as pessoas foram obrigadas a partir.

‘só se comprava açúcar e sal’

antónio não. antigamente, recorda, vivia do que davam a seara, os pomares, as hortas, os animais. «aqui, nesta casa, como em casa do meu pai, só se comprava açúcar e sal». em tudo o mais, a família era auto-suficiente. tinham bestas para carga e para transporte, ovelhas, vacas, cabras, porcos. «tudo, aqui havia de tudo», resume. por isso, antónio cavaco nunca sentiu necessidade abandonar este lugar. «tinha com o que me governar».

já então, mercê de uma professora que vinha a uma aldeia próxima, cortes pereiras, ele conseguiu completar a terceira classe. e nunca sentiu necessidade de mais. «sabia escrever e fazer contas. para a minha vida aqui chegava-me».

ele era, aliás, uma excepção nestes povoados perdidos no interior algarvio, onde quase ninguém sabia ler nem escrever. «partia muita gente e era eu quem lia as cartas que chegavam, e quem escrevia de volta. quem me diria então, que um dia ia precisar de quem me fizesse o mesmo?».

hoje, os olhos já não o ajudam a decifrar as letras miudinhas. e é a antónio mestre, vizinho a duas ou três casas de distância que regressou à aldeia depois de reformado, que pede ajuda para ler ou escrever.

antónio mestre voltou há cerca de seis anos ao sítio onde casou, mas não ao lugar onde nasceu. ele, de 71 anos enxutos, veio de corte da seda, aldeia a meia dúzia de quilómetros, mas aqui veio casar. também conhece bem as memórias destas aldeias e está apostado em não as deixar morrer. tão apostado que decidiu escrever um livro, editado pela câmara de alcoutim, sobre as lendas do lugar.

mas não só: criou ainda um museu dedicado às memórias agrícolas do sítio, para que os mais jovens não as esqueçam.

antónio mestre é crítico em relação ao estado actual das coisas: «o poder esqueceu-se de que é preciso apostar no sector primário, a agricultura, só depois no resto. nunca se viu construir uma casa pelo telhado. agora é tarde».

recorda-se do tempo, anterior à sua partida, em que os casais que viviam em corte tabelião tinham 15 filhos a ir à escola. mas, como ele, foram forçados a abandonar o lugar onde nasceram em busca de melhores condições. «há 45 anos que não nasce um bebé aqui», lembra.

ele, depois de trabalhar na construção civil, como operário fabril e de ter pertencido à marinha portuguesa, regressou. porque ama a terra onde nasceu. e acredita que, quem sabe, «um dia, as coisas possam mudar». mas não é fácil. por aqui, não há lojas, centros de saúde ou serviços. é a carrinha da junta que vem buscar as pessoas para ir ao médico a alcoutim. e todas as semanas vem uma carrinha para levar os mais velhos que queiram ir à vila. «antigamente, havia um senhor que vinha todas as semanas numa carrinha vender coisas de mercearia. mas ele morreu e não apareceu ninguém para o substituir», conta o ancião antónio cavaco.

hoje, a aldeia de corte tabelião permanece um punhado de casas brancas erguido sobre um monte da serra e isolado do mundo. um recanto esquecido onde o tempo passa mais devagar. e onde os políticos não vêm dar beijinhos em época de campanha. caso viessem, vaidosa trataria, decerto, de os expulsar.

alcoutim: sem barbeiro e sem talho

a uma dezena de quilómetros, fica a sede de concelho, alcoutim. mesmo na vila, não vivem mais de 400 pessoas, a lutar contra uma desertificação e abandono galopantes. em 2001, eram 3.770 habitantes em todo o concelho, hoje são pouco mais de 2.900.

e alcoutim teria à partida tudo para ser um lugar turístico. localizada à beira-rio, parece uma imagem de postal à espera de ser explorada. em tempos idos, a vila foi mesmo palco de um tratado de paz assinado entre o rei dom fernando i e o rei dom henrique. era então considerada um ponto estratégico na defesa aos avanços de castela.

maria, de 50 anos, é a dona de um dos poucos cafés da vila, e uma das poucas pessoas que decidiram ficar. hoje está arrependida. «aqui não há nada. nem pessoas, nada. o que fiquei aqui a fazer?», interroga-se.

em alcoutim, o silêncio toma conta dos dias. nas ruas, belas, que se estendem até ao rio guadiana é raro encontrar vivalma. na outra margem fica sanlucar de guadiana, já na vizinha espanha.

maria explica. «aqui as pessoas não têm onde trabalhar. só na câmara e em alguns serviços. mas são muito poucos». por isso, a maioria optou por partir – para faro, para vila real ou para o estrangeiro.

«olhe, não temos supermercados, nem lojas, que fecharam todas por falta de clientela. nem sequer talho há na vila». aliás, a falta de um barbeiro em alcoutim deixou mesmo antónio cavaco, de corte tabelião, com um problema: não sabe onde poderá cortar o cabelo.

manuel garcia, de 34 anos, é dos poucos jovens teimosos que insistiram em ficar. trabalha na construção civil, mas as obras escasseiam. agora está a recuperar uma casa no centro de alcoutim. e depois? não sabe. com duas filhas em idade escolar e a mulher desempregada, pondera também ele sair de alcoutim, quando tiver as filhas em idade de frequentar o segundo ciclo.

em alcoutim, não é possível estudar após o ensino primário, outro dos motivos apontados para partir. manuel, que trabalha por conta própria, equaciona emigrar para a alemanha, para onde já saiu grande parte da sua família. «aqui, o que há para fazer? nada. absolutamente nada. não tenho por que ficar».

sonia.balasteiro@sol.pt