Alta cilindrada

Fala-se cada vez mais nos riscos de dissolução dos princípios, meios e fins da democracia representativa, enquanto os sintomas de desencanto e cepticismo dos eleitores são potenciados pelo crescente défice de pensamento na fundamentação das propostas ou decisões políticas.

Perante a complexidade dos problemas, assiste-se a uma espécie de fuga para a frente em busca de expedientes e truques de efeito fácil, sem ponderação das suas implicações e com desprezo manifesto pelo discernimento dos cidadãos.

Eis três exemplos que ilustram esta tentação do facilitismo mais expedito.

O primeiro, de iniciativa governamental, é a lotaria de automóveis ‘topo de gama’ ou de ‘alta cilindrada’ para sortear entre os contribuintes que apresentarem o maior número possível de facturas das suas compras.

O segundo, da autoria do Partido Socialista, refere-se à criação de um tribunal especial, aparentemente inspirado também pela ‘alta cilindrada’, para despachar os casos relacionados com o grande investimento estrangeiro.

Finalmente, o terceiro consiste na proposta do PCP – e do eurodeputado João Ferreira, que acumula essas funções com as de vereador da Câmara de Lisboa – para colocar Portugal fora do euro, igualmente em jeito de ‘alta cilindrada’.

Estes três propósitos são naturalmente defendidos pelos seus autores em nome de outros exemplos ou conclusões que legitimariam a respectiva pertinência.

O sorteio de automóveis ‘topo de gama’ para os contribuintes travestidos em ‘cobradores de fraque’ parece ter sido ensaiado com sucesso em São Paulo (Brasil), Eslováquia e Taiwan, o que justificaria a sua festiva adopção em Portugal.

O tribunal em velocidade acelerada para o investimento estrangeiro ter-se-á baseado em estudos de câmaras de comércio ou outras instituições empenhadas em desburocratizar as teias da Justiça portuguesa e seria, por isso, uma ideia utilíssima para dinamizar a nossa economia.

Quanto à saída de Portugal da moeda única – e, porventura, da própria União Europeia – representaria o impulso decisivo para nos libertar das garras da Europa predadora, levando até às últimas consequências o épico sonho isolacionista do PCP.

O problema com estas ideias miraculosas de ‘alta cilindrada’ é que são indecentes (a lotaria governamental dos ‘topos de gama’), anti-igualitárias e inconstitucionais (a Justiça a duas velocidades, para os grandes investidores e para os outros, proposta por um partido dito socialista!), ou irrealistas e retrógradas (o PCP está em sintomática sintonia com os partidos eurofóbicos actualmente em voga entre a direita radical europeia).

A iniciativa luminosa do secretário de Estado Paulo Núncio de transformar os contribuintes em agentes do fisco é consagrada por um símbolo excelentíssimo do ‘consumismo’ e do ‘despesismo’ (lembram-se do ‘país que vive acima das suas possibilidades’, tão causticado pelo actual Governo?). Mas, nestes tempos de ‘vale tudo’, o que preocupa menos quem nos governa é manter qualquer réstia pedagógica de coerência.

Por isso, o cidadão que preze minimamente a sua dignidade e não queira ver-se tratado como gado tem um acrescido motivo moral para recusar ser ‘cobrador de fraque’ a troco de um ‘topo de gama’ (ao qual, cúmulo da indecência, até os próprios contribuintes com dívidas ao fisco poderão concorrer!).

Já o PS pode recorrer a todos os relatórios internacionais, mas não se livra da desonra de querer ultrapassar, em ‘alta cilindrada’, o mesmo Governo que acusa de promover as desigualdades – e, logo aqui, num domínio crucial: o da Justiça.

Se o PCP não incorre no pecado de incoerência com o seu velho anti-europeísmo militante, a forma desabrida como o eurodeputado João Ferreira opta pela ‘alta cilindrada’ para fugir da Europa faz lembrar o discurso da sra. Le Pen e quejandos. Sendo tão grande o seu horror, porque não se fica, então, pela Câmara de Lisboa?

Dito isto, uma coisa é recusar as consequências nefastas que a actual arquitectura dos poderes europeus tem provocado nas economias periféricas, e outra, totalmente diversa, é alinhar, exibindo um fervor integrista, com os dogmas mais reaccionários contra a Europa. Parece-me totalmente legítimo discutir os prós e contras da permanência no euro, mas repugnava-me estar na companhia dos talibãs eurofóbicos.