Atlanta. “Às vezes temos de encontrar leveza no caos”

Brian Tyree Henry conquista-nos com a hilariante personagem Alfred “Paper Boi” que pode ser vista a partir de sábado em “Atlanta”, a nova série da Fox Comedy.

Nos EUA chegou ontem ao fim a primeira temporada da série “Atlanta”. Por cá ainda vamos a tempo de ver uma das mais surpreendentes estreias televisivas do ano: em Portugal, a série criada por Donald Glover (conhecido no universo do hip hop como Childish Gambino), estreia-se no próximo sábado, às 00h50, na FOX Comedy.

É na cidade do Estado da Geórgia que encontramos Earn Marks, um antigo estudante de Princeton que regressa a casa com a chamada “mão à frente e outra atrás” sem saber o que fazer da vida, ao passo que o seu primo Alfred “Paper Boi”_Miles é um dos nomes em efervescência no panorama do rap de Atlanta, ainda que seja só com um “one hit wonder”. É em Alfred que reside toda a esperança de Earn ter algum sucesso na vida e, por isso, candidata-se ao lugar de agente de “Paper Boi”.

O ator Brian Tyree Henry interpreta, em “Atlanta” o papel de Alfred, um jovem negro em Atlanta a batalhar pelo sucesso, a acotovelar-se no meio de tantos outros rappers que procuram o mesmo sucesso, mas que por ter o coração na boca e agir primeiro antes de pensar, acaba por ser notícia pelas razões erradas. E é Brian Tyree Henry que explica ao i o sucesso desta série com um sentido de humor experimental, a fazer lembrar os tempos de Dave Chapelle, com um Justin Bieber negro e carros invisíveis, mas que não deixa de pôr o dedo nas feridas abertas dos direitos cívicos nos EUA.

Ainda que seja muito mais talentoso do que a sua personagem “Alfred”, a sua carreira também tem sido feita de batalhas – o chamado hustling. Da Broadway, na peça “Book of Moromon”, para a televisão a interpretar o papel de um rapper. De onde vem o interesse por esta personagem?

Deram-me o guião de “Atlanta” e comecei a ler. O Alfred foi das primeiras coisas que me entusiasmou: adorei-o imediatamente porque senti que já o conhecia, que era alguém com quem tinha crescido, com quem tinha jogado às cartas ou dados. Era alguém tão incrivelmente relacionado com a minha vida que comecei a montar o puzzle da sua vida, mas também a ver o quão difícil ia ser. Ao interpretar um artista de hip hop há sempre rótulos que são colados. São esses rótulos que quis destruir, mandar abaixo como dominós.

E o que é que quis construir por cima?

Aquele gajo que se encontra em todo o lado, que todos conhecemos e gostamos. O gajo que diz logo como as coisas são e que queremos ver a ter sucesso. Sinto que toda a gente tem um Alfred com que se pode relacionar e que até já foi beber uns copos, ou já fez música. Mas também queria fazer dele um tipo em constante crescimento e mudança. Não queria que fosse um homem de difícil acesso que as pessoas não só temem e também catalogam. Esta é uma visão fresca do hip hop.

O Brian não o quis mostrar como um homem que se deva temer, mas, na verdade, é isso que parece acontecer: toda a gente cataloga o Alfred como um traficante de droga e até homicida.

O Alfred nasceu e cresceu em Atlanta. Adora o sítio de onde vem e a cidade corre-lhe nas veias, mas também sabe que enquanto homem negro inserido nesta sociedade tem de sobreviver de melhor forma possível. O primo dele, o Earn, que estudou em Princeton e voltou a Atlanta, mas sem explicar como é que foi lá parar. Só que essas oportunidades nunca chegaram ao Alfred, por isso ele nunca pôde sair de Atlanta. No jogo do rap que o Alfred joga ele não quer saber de agentes nem nada: só quer é receber o dele e sobreviver. É um lutador, um hustler, que está à procura de ter sucesso na vida por ele.

O Brian nasceu na Carolina do Norte, mas também tem uma forte relação com a cidade de Atlanta. Já era conhecedor deste mundo de hip hop?

Completamente. Eu andei na faculdade de Morehouse, em Atlanta, dos 18 aos 22 anos, por isso foi como voltar a casa. Atlanta era muito instrumental e criou o homem que eu sou hoje. Foi lá que cheguei à minha paixão pela representação, foi lá que fiz amizades que tenho até hoje. Quando comecei a faculdade foi quando o som de Atlanta começou a expandir-se pelo mundo, com o Lil John, Ludacris e Outkast e que tornou-se num fenómeno mundial. O que eu adoro é que 12 anos depois ainda é uma cidade super-cultural e que recebe toda a gente, um local tão rico, criativo e diverso. Ainda olho para Atlanta como uma grande Meca preta onde as pessoas negras podem vir criar para esta metrópole.

Os estereótipos e estigmas que o guião aborda são tratados com um sentido de humor hilariante. Essa é a melhor forma de os enfrentar?

Acredito que sim. Às vezes temos de encontrar leveza na loucura, no caos. É isso que faz com que possamos acordar na manhã seguinte para olhar para o mundo com olhos frescos. Há tantos estigmas que nos põem em cima neste país que é importante derrubá-los e virar o periscópio para outro lado para poder dizer: “não é a coisa mais ridícula que já viste?” ou “não é louco como nos categorizamos aos outros?”. Mas lá porque tornamos as situações num absurdo, não quer dizer que não sejam realidade. Adoro que tenhamos criado este universo em que podemos fazer o que quisermos.

Os problemas de brutalidade policial são abordados através de um momento de banda desenhada, em que um polícia detém um alegado bandido que quer comer os cereais a crianças. E ainda há um agente que quer tirar uma selfie com o Paper Boi.

Gosto que “Atlanta” tenha encontrado uma forma de fazer as pessoas rirem-se através do absurdo. Nesse caso, trata-se de um anúncio a cereais que mostra o desiqulíbrio em que está este mundo e a melhor maneira de mostrá-lo pode perfeitamente ser através dos olhos das crianças que nem se importam de partilhar os cereais com um homem com fome, apesar de a polícia o tratar como um delinquente. A minha parte favorita é quando a criança saca da câmara do telemóvel e começa a filmar o agente em auto-defesa. É para rir, sim, mas também é o reflexo da sociedade em que vivemos.

Também ficou surpreendido com a imaginação do Donald Glover?

Nada surpreendido. Já conhecia o lado criativo dele, seja como rapper Childish Gambino ou no filme que ele fez em 2009, “Mystery Team”. Sempre adorei a visão dele do mundo, que é tão próxima da minha. Acho que foi isso que tornou esta série tão especial: senti que conhecia o Donald desde sempre. O Donald é um génio: criou estas personagens de forma tão impressionante que conseguem relacionar-se com qualquer pessoa de qualquer parte do mundo.

Surpreendeu-me muito o tipo de humor da série, algo que não víamos há tanto tempo: surreal e experimental.

É refrescante. É como um grande copo de água gelada no dia mais quente do verão. E nós estávamos sedentos de algo assim – pelo menos eu estava – de sermos representados desta forma na televisão. A última vez que me lembro foi com o “Chapelle Show”, que além de hilariante e absurdo, tinha muita coisa com que me identificava. Estamos muito orgulhosos de poder criar momentos com carros invisíveis ou ter um Justin Bieber preto ao memso tempo que falamos de coisas importantes.

E vê o Paper Boi como um rapper de sucesso?

Não só o Paper Boi mas também o Alfred! Desde que eles se mantenham afastados de problemas, vai correr tudo bem!