Atlético. A fortaleza da tapadinha

Em 1950, o Campeonato Nacional acabou com os de Alcântara em terceiros – só Benfica e Sporting foram capazes de melhor. História única.

Quem vem e atravessa o rio, o Tejo neste caso, vê o campo de futebol lá no alto da Tapada. Dizem muitos que foi a Ponte 25 de Abril, outrora Salazar, inaugurada em agosto de 1966 – mais uma festa a juntar à festa que foi a receção feita aos Magriços, que conquistaram o terceiro lugar no Mundial de Inglaterra –, que matou o_Atlético. Dez anos mais tarde, o Atlético Clube de Portugal abandonava a I Divisão para nunca mais voltar.

Muito, muito antes disso, nasceu por conveniência. No dia 18 de setembro de 1942, dois clubes de Alcântara acertaram a fusão – um era o Carcavelinhos Futebol Clube, nascido a 14 de fevereiro de 1912 e que cometeu a proeza de conquistar o Campeonato de Portugal, antecessor da Taça de Portugal, na época de 1927-28, batendo o Sporting na final por 3-1; o outro era o União Foot-ball Lisboa, fundado ali um pouco mais ao lado, em Santo Amaro, no dia 3 de março de 1910, e que também atingiu uma final do Campeonato de Portugal, em 1928-29, perdendo por 1-2 com o Belenenses.

Vontades cruzadas, o Atlético ganhou vida própria e, sobretudo, uma afeição popular castiça e autêntica. Os seus adeptos ganharam a alcunha não propriamente simpática de ‘carroceiros’. Fazia parte. Até porque em Belém, quase vizinho, o Belenenses se orgulhava de uma certa nobreza. Condimentos essenciais para uma rivalidade renhida.

Com os alicerces da Ponte Sobre o Tejo escavados no peito de Alcântara, bairro proletário da capital, muitos foram os que tiveram de partir para outras zonas de Lisboa em busca de casas para morar. O golpe foi duríssimo para o Atlético que, 16 anos antes de o primeiro automóvel ter viajado de Lisboa para Almada como se sobrevoasse o rio, assinou o momento mais brilhante da história do clube no Campeonato Nacional da I Divisão, garantindo, ao fim de 26 jornadas, o 3.º lugar, com apenas Benfica e Sporting à sua frente, e os do Restelo à retaguarda, no quarto posto. Ah! Se era de estalo! Algo apenas comparável às duas presenças na final da Taça de Portugal, a primeira em 1946 (derrota com o Sporting por 1-2), a segunda em 1949 (derrota com o Benfica também por 1-2). Valera a pena a fusão, Carcavelinhos e União tinham gerado, naquele final de tarde no salão cinematográfico da Sociedade Promotora de Educação Popular, um filho capaz de honrar os seus passados.

 

Entre grandes

Sobre a época de 1949-50 correram-se este ano as cortinas de sete décadas. Um basco chamado Pedro Pablo Areso Aramburu, natural de Ordizia, onde veio ao mundo no dia 29 de junho de 1911, estruturara à medida da sua combatividade uma equipa que contava com jogadores como Francisco Correia, Ernesto Oliveira e Rita (guarda-redes); Baptista, Barreiro, Armindo, Abreu, José Lopes e Avelino, na defesa e, do meio-campo para a frente, Barros, Morais, Armando Carneiro, Carlos Martinho, Armindo Silva, Neves e Rodrigues, Teixeira da Silva, Demétrio e Barbosa, Rogério Guedes, Caninhas, Andrade, Etelvino, Silva Pereira e Ben David. E não, não foi por acaso que deixei este para último.

Pablo foi uma figura! Como jogador, chegou ao Barcelona, onde esteve pouco tempo por ter rebentado entretanto a Guerra Civil de Espanha. Disputaria nessa altura vários jogos com a camisola da seleção de Euskadi, que fez digressões pela Europa e pela América. Tornou-se treinador no Santander e foi personagem de romance, protagonista principal de uma novela escrita em basco pelos irmãos Martín e Xabier Etxeberria, Ez Dadila Eguzkia Sartu – Que Não Se Ponha o Sol.

Em Lisboa encontrou um jogador extraordinário, talvez o mais marcante de toda a história do Atlético, com licença de Germano: Henrique Ben David. Nascido no Mindelo, em Cabo Verde, no dia 5 de dezembro de 1926, Ben David rumou à Metrópole e ao Unidos de Lisboa, um clube que pertencia ao grupo industrial da CUF, Companhia União Fabril, propriedade de Alfredo da Silva. Alto, magro, elegante, exímio no jogo de cabeça, rematador temível com ambos os pés, rapidamente fez sensação em Lisboa e em Portugal, por arrasto.

Do Unidos seguiu, com naturalidade, para a CUF do Barreiro, onde tinha à sua espera um emprego como mecânico de automóveis. A CUF ainda não era aquela equipa que viria a ser nos anos 60. Ou seja, era pequena demais para o talento de Henrique. Em 1947 assinava contrato com o Atlético pela quantia bastante aceitável de 500 escudos por mês. Nunca uma nota de quinhentos fora tão bem empregue desde o tempo de Alves dos Reis. Entre 1947 e 1955, Henrique de Sena Ben David jogou 122 vezes com o jersey das riscas azuis e amarelas (ou apenas branco), marcando 100 golos. Desses, 21 pertenceram ao Campeonato Nacional da I Divisão da tal época brilhante de 1949-50. Só Julinho, do Benfica, com 28, conseguiu melhor desempenho.

A prova em si não teve chama por aí além. O Benfica sagrou-se campeão com 45 pontos e apenas duas derrotas, seis pontos de avanço sobre o Sporting. Os heróis de Alcântara não passaram dos 30, ainda assim melhores do que Belenenses (27) e FC Porto (26). Em redor de Ben David enraizou-se um conjunto agressivo que fazia do seu reduto da Tapada uma fortaleza inultrapassável: nenhuma derrota em casa, cinco empates e oito vitórias, com uns radiantes 3-1 ao Sporting, uns fantásticos 4-1 ao FC Porto e uns significativos 6-0 ao Vitória de Guimarães. Só o Benfica e o Belenenses estragaram a festa em Alcântara: dois empates iguais – 1-1. Já fora do seu bairro, as coisas complicaram-se: 0-4 frente a Benfica e Sporting; 1-3 com o FC Porto. Ficou o consolo regenerador: 0-0 nas Salésias. O rival Belenenses não ganhou aos bravos da Tapadinha.