Autismo. “A emoção mais forte e antiga é o medo. E temos muito medo do desconhecido”

No Dia Mundial da Consciencialização do Autismo, o Nascer do SOL esteve à conversa com Liliana Alves Bento e Duarte Peres – mãe e filho -, André Antunes e Ricardo Nunes para compreender esta condição. Ouviu também o neurocientista e professor catedrático Miguel Castelo-Branco, o médico Fernando Campilho (presidente do Conselho Executivo da Federação Portuguesa…

“A minha vida é dedicada ao Duarte. Estou como cuidadora informal principal dele na Segurança Social. Os rendimentos que tenho são uma miséria. Digo sempre: ‘Duarte, o mais importante são as terapias’. E o que é que importa numa família?”, pergunta Liliana Alves Bento, de 45 anos, ao filho, de 13. “É o amor”, responde o adolescente que recebeu o diagnóstico de perturbação do espetro do autismo (PEA) quando ainda não tinha dois anos e, desde aí, não tem tomado quase medicação nenhuma para controlar os sintomas e as crises graças ao empenho dos terapeutas e da mãe. “Ele chegou a tomar fármacos como a Risperidona, mas parecia um zombie. Ficava sentado no sofá a babar-se. É assim que uma mãe quer ver um filho?”, questiona Liliana, asseverando: “Quero vê-lo controlado, mas bem. Portanto, enquanto tiver braços e força, seguro-o e acalmo-o durante as crises”.

“Mas eu já não tenho crises!”, riposta Duarte. “É verdade, filho, não tens tido ultimamente, mas podes vir a ter”, sublinha a progenitora, sempre atenta ao modo como fala com o menino cujo sonho é desenvolver jogos digitais. E que até já foi a aulas da licenciatura em Jogos Digitais e Multimédia, da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria, mostrar o trabalho que faz em casa. “Tanto os alunos como os professores ficaram impressionados com aquilo que ele já é capaz de criar”, conta Liliana, enquanto o filho diz convicta e rapidamente: “Muitos dos meus colegas perguntam ‘Quem é o autista da turma?’, porque os professores dizem que há alguém com esta condição, e eu não digo porque tenho vergonha. Também tenho medo de que achem que sou burro”, aponta o menino que criou o canal ‘Pwerfer gaming’ no YouTube e sonha conseguir chegar a uma audiência cada vez mais alargada.

O neurocientista e professor catedrático Miguel Castelo-Branco, da Universidade de Coimbra, tem testado, para além dos medicamentos, o uso de jogos de realidade virtual para “melhorar as competências sociais e de regulação emocional” de crianças e jovens autistas, depois de ter identificado “marcadores neurobiológicos” do autismo (que variam de pessoa para pessoa), como explicou à agência Lusa. “São jogos que tentam melhorar competências específicas, ligadas à autonomia do dia a dia, como ir ás compras, tomar transportes públicos, etc.”, indica em declarações ao Nascer do SOL. O recurso aos jogos imersivos pode ser acompanhado pelo “registo simultâneo de biosinais de atividade do cérebro, ritmo cardíaco”, permitindo ter “melhor ideia do estado cognitivo” das crianças e jovens e “dar ‘feedback’ desses sinais”, disse também. Como funcionará este processo? “No fundo, enquanto estudamos as competências e melhora do desempenho durante os jogos, obtemos medidas do corpo que nos dão uma ideia do estado emocional e de ansiedade. Podemos também obter medidas do sinal cerebral e dar ao nosso participante feedback sobre a melhoria destes sinais”.

“É sem dúvida um desafio, em que diariamente tentamos vencer todo o tipo de barreiras, mas sempre com espírito positivo”, aponta o também pai de um jovem com PEA. “Por ser neurocientista, já tinha algum conhecimento sobre as perturbações do neurodesenvolvimento, mas tenho hoje consciência que esse conhecimento estava minado pelos preconceitos e conhecimento ainda mais incompleto daquela época”, diz, dando o exemplo da forma como as novas tecnologias são encaradas. “Eu penso que há muita informação não provada sobre fatores de risco e, pior que isso, até desinformação. Alguma dessa desinformação é mesmo proveniente de investigadores menos bem intencionados, como os trabalhos sobre as vacinas, que se provaram ser uma fraude”, recorda o vencedor do Prémio Bial de Medicina Clínica 2022 após 15 anos de investigação sobre a PEA.

“A alegria de uma recompensa sobre um percurso que está longe de estar terminado, pois há muitos desafios por vencer”, confessa Miguel Castelo-Branco. “Os fármacos que existem ainda são muito agressivos e têm muitos efeitos secundários”, mencionou, em entrevista, à TSF, em 2020. O que é que ainda falha na área da farmacologia e poderia ser feito? “Não há ainda fármacos para as perturbações primárias do autismo. O que existe é usado meramente para ‘mitigar’ manifestações secundárias, o que é claramente insuficiente”, realça. “Há pessoas altamente bem-sucedidas, apesar de terem um estilo cognitivo e de socialização peculiares, altamente funcionantes e, por outro lado, temos pessoas com deficiência intelectual”, indicou à TSF. Em Portugal, as pessoas com autismo ainda são estigmatizadas ou essa realidade tem vindo a alterar-se ao longo dos últimos anos? “A estigmatização ainda existe, e como disse numa entrevista recente à revista Visão, está presente na Sociedade e até na esfera política, como o uso frequente de forma pejorativa do termo ‘autista’”, diz, indo ao encontro da perspetiva dos restantes entrevistados.

“Cada caso é um caso e a forma de intervir tem de ser personalizada; os custos da intervenção são bastante elevados e nós estamos a tentar, através das novas tecnologias, minimizar até as horas de contacto com profissionais de saúde”, disse há três anos. Em território nacional, a conjugação dos fármacos com o recurso às novas tecnologias – nomeadamente, à realidade virtual – é promissora, na pessoa com PEA, ou ainda temos um longo caminho por trilhar? “Neste momento eu diria que é sobretudo fundamental encontrar financiamento para por em prática os resultados já obtidos, por exemplo para validar o uso generalizado destas soluções através de ensaios clínicos”, declara o investigador. “É preciso dar voz ao autismo e às pessoas com autismo, de forma a que a inclusão seja uma realidade”, finaliza.

“O Duarte não é burro, é até bastante inteligente. Mas, por exemplo, não consegue demonstrá-lo nas aulas. Imaginemos, tem dificuldade em Matemática, mas tem de a saber para aplicá-la nos jogos!”, exclama Liliana. “No fundo, ele tem muitos conhecimentos, têm é de ser explorados e aproveitados. E não pode entrar na sala de aula, ficar quieto, não ter qualquer ajuda como tem acontecido agora no 7.º ano e sair calado”. De facto, esta é a realidade da maioria das crianças e dos adolescentes autistas: a falta de acompanhamento nos estabelecimentos de ensino. Principalmente, nas transições de ciclo. Quem o confirma é Fernando Campilho, médico especialista em Medicina Interna e presidente do Conselho Executivo da Federação Portuguesa de Autismo. “O Dia Mundial da Consciencialização do Autismo foi criado pela Organização das Nações Unidas pelo reconhecimento do aumento da frequência do autismo. Cada vez se diagnostica mais. E há muitas conceções erradas sobre o que é esta condição. Por outro lado, há estigmatização e um problema: a utilização da palavra ‘autismo’ fora do contexto. Muitas das vezes, os políticos, jornalistas, sindicalistas, etc. utilizam a palavra ‘autismo’ ou ‘autista’ como insulto, como algo pejorativo”, menciona o também membro do Conselho de Administração da Autism Europe.

A título de exemplo, em setembro de 2013, o então cabeça-de-lista do Bloco de Esquerda à Câmara de Lisboa, João Semedo, acusou a maioria socialista de autismo e de ignorar os lisboetas, apontando a transformação da Baixa e a higiene urbana como promessas falhadas do presidente, António Costa. “Os erros que António Costa tem cometido poderiam ter sido evitados se o executivo socialista tivesse o bom hábito de ouvir as pessoas, os que vivem os problemas, mas esta maioria é demasiado autista para se preocupar com as opiniões das pessoas”, afirmou à agência Lusa João Semedo, no final de uma reunião com a direção da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina.

“Na Europa existem, pelo menos, 7 milhões de pessoas com autismo. Os estudos internacionais apontam para que, nos EUA, chegue a haver 1 em cada 44 crianças com autismo. E as pessoas nascem autistas e vão morrer autistas: não nos podemos esquecer disto. Temos de procurar respostas para todas as fases da vida. A primeira coisa que tem de se fazer é o diagnóstico, para que possa haver uma intervenção precoce, e depois tem de haver a inclusão escolar e não aquilo que acontece: a cosmética da inclusão. As crianças autistas ficam perdidas nas salas de aula e as transições dos níveis de escolaridade são muito críticas. Os decretos são muito bonitos, mas a aplicação é totalmente distinta. Tem de haver capacitação dos professores, auxiliares e dos próprios pares”, sublinha o profissional de saúde. “E a transição para a vida adulta é também complicada. Uns têm maior capacidade de se empregarem do que outros, mas o essencial é que haja espaços autism friendly. E estamos muito atrasados numa coisa: parece que não nos lembramos das pessoas autistas que estão na terceira idade. Têm de existir respostas”, frisa.

“Aquilo que se sabe é que o cérebro das pessoas autistas funciona de forma diferente e, por isso, veem o mundo com outro tipo de realidade. Um dos termos que se procura usar é a neurodiversidade: para explicar que as pessoas não são todas iguais. E, há mais ou menos 25 anos, uma senhora autista, socióloga, criou este termo quando descobriu que o filho também era autista. Quando se pergunta a quem é autista se quer deixar de o ser, a maioria diz que não! A questão é que há pessoas que precisam de mais e outras de menos suporte no seu quotidiano”, explica o oncologista no IPO do Porto, na área dos transplantes de medula, que tem uma filha com esta condição, nascida no início dos anos 80, sendo que só continua a exercer a profissão, tal como a esposa continua a ser farmacêutica, porque tiveram uma pessoa que os auxiliou desde que a mesma tinha 1 ano.

“Os recursos do Estado são limitados, mas poderia fazer-se muito mais. A nível da intervenção precoce, por exemplo. Diagnostica-se a condição, mas e depois? A saúde teria de fazer mais nesta área. Porque estas crianças serão adultos mais capazes. Falar com um adulto autista que teve terapias variadas é diferente de falar com um que ficou abandonado, digamos assim. Temos de determinar o apoio de que cada pessoa necessita. Também não podemos dizer que o Governo é culpado de tudo, mas é culpado de algumas coisas. Há um longo caminho por percorrer. A Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, para o período 2021-2025 (ENIPD 2021-2025) está muito atrasada: tem de dar passos seguros no sentido de melhorar a vida destas pessoas”, indica, sendo que se lê nos princípios orientadores da mesma que “ao construir a ENIPD 2021-2025, o Governo de Portugal reforça o seu compromisso com a inclusão, enquanto corolário maior de um verdadeiro estado de direito democrático, tendo como objetivo permitir a sua consolidação como um país igualitário, onde as pessoas com deficiência têm oportunidade de exercer plenamente os seus direitos e deveres, numa perspetiva de cidadania plena”.

“Assim sendo, a ENIPD 2021-2025 orienta-se pelos princípios fundamentais de respeito e garantia da dignidade humana da pessoa com deficiência, da sua autonomia, independência e autodeterminação, da participação em todos os domínios da vida, da promoção da igualdade e não discriminação nas suas diversas dimensões, incluindo discriminações múltiplas e pelo respeito pela diferença e diversidade”, é acrescentado. No entanto, tal nem sempre acontece, como narra André Antunes, de 34 anos. “Eu sei que já ia ao psicólogo e ao pedopsiquiatra nos anos 90. Porque ia para lá? Não fazia ideia, mas em 2007 ouvi pela primeira vez falar da Síndrome de Asperger. E, em 2016, comecei a trabalhar na Federação Portuguesa de Autismo. Não sabia é que a Asperger é exatamente a mesma coisa que o autismo. Foram as minhas colegas e a doutora Isabel Cottinelli Telmo que me explicaram que eu era autista”, afirma.

“Estive lá durante um ano e, depois, estive inscrito no IEFP a fazer formações. Inscrevi-me no programa ‘Incorpora’, da Fundação La Caixa, e entrei na Brico Depôt, em Loures. O que eu faço é, basicamente, fabricar os preços dos produtos conforme me pedem. Ambos os sítios são bons para mim, a diferença é que este sítio é mais conveniente para mim em termos de localização”, avança sobre a vida laboral, regressando à infância posteriormente. “Eu reparei que não era como as outras crianças porque ficava obcecado pelos desenhos animados e por tudo o que é eletrónico. Focava-me nos interesses pessoais e esquecia-me das outras coisas. À medida que fui crescendo, entendi que temos de prestar atenção a determinados aspectos. Por exemplo, ver, ouvir e ler notícias. Para além disto, não sabia nada daquilo que os meus colegas falavam. Eles já eram adolescentes e passavam a vida a ouvir o Eminem e o 50 Cent, imaginemos, e eu ainda estava a ver desenhos animados”, observa.

“Eu não tenho de ser exatamente como as outras pessoas, claro. Não encaixo no estereótipo de masculinidade tóxica e, acima de tudo, continuo a ser eu próprio. Estou bem assim e, desde que ninguém me prejudique por ser diferente, está tudo bem. O autismo não é uma coisa má: nascemos, crescemos e morremos com ele”, realça André, abordando a prevalência da PEA no mundo. Segundo dados apurados pela plataforma de estatística Wisevoter, os dez países com a maior prevalência de autismo são: Reino Unido, Suécia, Japão, Estados Unidos, Holanda, Irlanda, Brunei, Canadá, Singapura e Andorra. No topo da lista está o Reino Unido, cuja taxa de 700,07 por 100 mil pessoas é uma das mais altas registadas. Não muito atrás está a Suécia, com uma taxa de 661,85 por 100 mil, seguida pelo Japão com 604,72 por 100 mil. Os EUA também se classificam com uma taxa de autismo de 603,38 por 100 mil, assim como a Holanda com 591,54 por 100 mil. Logo atrás deste grupo estão a Irlanda e o Brunei, ambos chegando a 583,69 e 572,01 por 100 mil, respetivamente. O Canadá segue logo atrás deles com uma taxa de autismo de 565,85 por 100 mil, enquanto Singapura e Andorra empatam em décimo lugar com uma taxa de autismo de 547,02 por 100 mil habitantes.

No extremo oposto, os dez países com as taxas mais baixas de autismo no mundo são: Taiwan, Coreia do Norte, Tunísia, Líbia, Síria, Turquia, Marrocos, Ilhas Marianas do Norte, Índia e Tailândia. Cada uma dessas nações tem uma taxa global de prevalência de autismo de 300 por 100 mil ou menos. Taiwan tem a menor taxa de autismo do mundo, com uma taxa de 199 por 100 mil. A Coreia do Norte segue logo atrás com uma taxa de autismo de 251,67 por 100 mil. A Tunísia vem em terceiro lugar, com uma taxa de autismo ligeiramente superior: 284,45 por 100 mil. Líbia, Síria, Turquia, Marrocos, Ilhas Marianas do Norte, Índia e Tailândia têm uma taxa de autismo de 285,55 por 100 mil ou mais. Portugal surge em 26.º lugar com 496.61 casos por 100 mil habitantes.

“Temos de aprender a lidar com esta condição. Sem dúvida que fui vítima de bullying. No Ensino Secundário, chegaram a fazer-me perguntas e a gravar vídeos para mostrarem que eu não conseguia responder como eles queriam ou achavam correto. Essas imagens foram partilhadas online e essas pessoas foram expulsas da escola. Logo, aprenderam a lição da pior maneira. Foi uma das partidas mais cruéis que me fizeram”, salienta o jovem cuja única medicação que toma é o Aripiprazol 15mg. “Antes tomava mais medicação, mas o meu médico reduziu-a quando soube que encontrei a minha namorada. Tem havido altos e baixos, mas estamos juntos há sete anos”.

“Tenho psicoterapeuta uma vez por mês, mas preferia ter mais. A única coisa mais parecida com ajuda que eu tenho é um Atestado de Incapacidade Multiusos. Segundo a lei, posso ter apoios a partir dos 60% de incapacidade. Como tenho exatamente essa percentagem, tenho direito a alguns apoios como o facto de não pagar consultas no centro de saúde nem nada no hospital. Há uns tempos, recebia um subsídio da Segurança Social, mas deixei de o receber desde que comecei a trabalhar”, acrescenta. “Há falta de apoios porque os próprios políticos estigmatizam o autismo. Se eles dizem que o governo é autista, é normal que esta condição ainda não seja devidamente apoiada”, constata o jovem que está associado à Voz do Autista. “Testemunhei o nascimento da mesma e é uma associação que prova que não somos limitados: sabemos defender-nos”.

“Eu fui vítima do desconhecido” “Eu descobri que tenho esta condição quando estava no 8.º ano. Na altura, a nível de estudos e investigação, sendo que fui diagnosticado com Síndrome de Asperger, não havia muito em Portugal. A globalização no que toca ao autismo chegou tarde cá. E, por isso, só recebi o diagnóstico por volta dos 13/14 anos, mas quando eu tinha 2/3 anos já suspeitavam. Por sugestão da minha médica, comecei a ter acompanhamento psiquiátrico e, até hoje, mantenho-o”, começa por declarar Ricardo Nunes, de 31 anos. “Sei que não mantinha contacto visual, não compreendia coisas entrelinhas como expressões idiomáticas. Era mais nesse sentido. Também repetia muito algumas coisas. Por exemplo, quando gostava de uns desenhos animados ou de um jogo”.

“Ao longo dos anos, fui vítima de muito bullying. À época, achava-se que eu não tinha atitudes de uma pessoa neurotípica, que era estranho. Será que foi por eu ser tão diferente ou já estava destinado a isto?”, pergunta. “Se há algo que aprendi na minha vida é que a emoção mais forte e antiga é o medo. E temos muito medo do desconhecido. Eu fui vítima do desconhecido, simplesmente isso. Não se pode generalizar: a única coisa que se pode generalizar é o conceito de bullying. De resto, tudo difere. Cada vez mais, vemos casos tão particulares… Temos de ver cada um em pormenor”, recomenda o jovem que estudou até ao 12.º ano e ainda frequentou uma licenciatura. “Não consegui acabar o curso por questões financeiras e porque os professores… Não respeitam os alunos. Especialmente, pessoas com deficiências invisíveis como o autismo. Se fosse uma deficiência que desse nas vistas, sendo física ou não, teria sido diferente. Mesmo com a quantidade de bullying de que fui vítima, safei-me até ao Secundário porque tive professores que me entenderam mesmo quando não gostavam de algumas das minhas atitudes. As experiências positivas sobrepõem-se às negativas”.

“Em termos de percurso, sou colaborador da Inovar Autismo. Antes de existir a Inovar, trabalhei em consultoria de informática. Estive lá um ano e seis meses. O ambiente de trabalho era bom, as pessoas eram brutais, só não continuei lá porque para aquela empresa era muito importante subir na carreira. Eu só quero um trabalho, receber o meu dinheiro e pronto. Portanto, não me renovaram o contrato. Estive desempregado durante quatro anos. Na Inovar faço trabalho de escritório como organizar documentos”, diz Ricardo. “Existem apoios, mas há uma lista de espera longa. O problema é a burocracia. Mas, por exemplo, tenho ouvido que conseguir o atestado de incapacidade multiusos e a PSI [Prestação Social para a Inclusão] é mais rápido. Tem havido um impacto positivo. Este dia é importante, mas mais do que consciencialização… Tem de haver aceitação e reconhecimento. Não podemos estar à espera de consciencializar todas as pessoas”.

Apesar de tudo, a aceitação e o reconhecimento de que Ricardo fala têm existido e há imagens que nos surpreendem. Em agosto de 2019, uma correu mundo: a de um menino a consolar o colega, que sofre de PEA, no primeiro dia de aulas. “Estou tão orgulhosa do meu filho. Ele viu um menino enrolado a um canto, a chorar, e consolou-o. Então, pegou na mão dele e entraram juntos na escola. É uma honra criar um menino adorável e compassivo como ele! Tem um grande goração e o primeiro dia de escola começou da melhor forma”: foi assim que Courtney Coko Moore, mãe de Christian Moore, retratou aquilo que aconteceu na Minneha Core Knowledge Elementary, na cidade de Wichita, no estado norte-americano do Kansas, no passado dia 14 de agosto. A verdade é que o rapaz de oito anos percebeu que Connor Crites, da mesma idade e prestes a frequentar o segundo ano de escolaridade, não estava a lidar bem com o regresso às aulas e decidiu auxiliá-lo.

“Todos os dias receio que alguém goze com ele por não falar corretamente ou por não se aguentar bem em pé” explicou April Crites, progenitora de Connor, ao canal de televisão KAKE, acrescentando ainda: “A cor, o género e as incapacidades não importam: apenas temos de ser bondosos, abrir os nossos corações porque é isso de que necessitamos no mundo”. Por outro lado, a criança contou aos jornalistas: “Ele foi querido comigo. Estava a chorar e ajudou-me. E… fiquei feliz. Ele pegou na minha mão e eu chorei de alegria”. Agora, as duas mães afirmam que os menores têm “um laço inquebrável”. A família Crites está extremamente grata pelos gestos do pequeno Christian e, através do Facebook, April expressou: “Fico verdadeiramente contente por saber que um menino foi cuidadoso com o meu bebé”.

Com o objetivo de combater o bullying, a violência e o racismo – “para fomentar a paz e a união bem como a luz positiva através de atos de bondade e de amor” – as famílias das crianças criaram a página ‘Christian & Connor Bridging The Gap’ (em português, Christian e Connor a colmatar a lacuna/a mitigar as diferenças), no Facebook. Ainda que episódios como este nos possam marcar, a verdade é que quem tem PEA sofre muito, como foi revelado por Duarte, André e Ricardo. “Passei por várias avaliações longas quando tinha 6 e 7 anos. Lembro-me de longos períodos de espera em que brincava com o meu irmão mais novo nas salas de espera. No final da avaliação, o médico convidou-me a entrar no seu consultório pela primeira vez – e descobri que o médico estava a observar tudo o que fazíamos através de um espelho falso. Fui diagnosticado com Síndrome de Asperger. O meu irmão também foi diagnosticado nessa época, embora eu não ache que o médico lho tenha contado diretamente”, diz, em declarações ao Nascer do SOL, o doutorando norte-americano Elliot Gavin Keenan.

“Senti-me estigmatizado quando estava na escola. Fui severamente intimidado. O mais irónico, porém, é que nunca contei a ninguém que tinha autismo/Asperger até quase ao final do 3.º ciclo. Na faculdade, comecei a ser muito aberto sobre isso e descobri que a estigmatização diminuiu. Agora, às vezes pode até ser uma vantagem, embora eu queira ser visto como bem-sucedido independentemente dos meus diagnósticos”, afirma o rapaz que estuda Psicologia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. “Acho que temos uma crise em mãos com a falta de infraestruturas para ajudar adultos autistas. Existem longas listas de espera para habitação e serviços que, muitas das vezes, são insuficientes, mesmo que os consigamos. Se nos mudarmos de um estado para outro, perdemos o acesso a todos os serviços que tínhamos no nosso estado de origem”, conclui, estabelecendo um paralelismo entre a falta de suporte em Portugal e a mesma nos EUA.

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