Carta a Caetano

Esta é a segunda carta aberta que te escrevo; a anterior, extensa, escrevi-ta há exatamente dez anos, numa edição da revista Egoísta, sujeita ao mote ‘Sonho Português’.  Raramente as cartas-abertas são ternas, cantigas de amigo sem refrão que lhes ampare o sol e o silêncio; em geral são crónicas de escárnio e maldizer, ou rajadas…

Esta é a segunda carta aberta que te escrevo; a anterior, extensa, escrevi-ta há exatamente dez anos, numa edição da revista Egoísta, sujeita ao mote ‘Sonho Português’. 

Raramente as cartas-abertas são ternas, cantigas de amigo sem refrão que lhes ampare o sol e o silêncio; em geral são crónicas de escárnio e maldizer, ou rajadas de raiva e de guerrilha. 

As Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa eram tudo isso, traziam no bojo o amor, o desamor, a fúria e a desobediência, o mundo e o lenço dos namorados de Viana do Castelo com uma ponta suja de sangue. 

Foram um caso, moveram as águas, lançaram âncora, mas ainda hoje continuam por cumprir – e continua sobretudo por cumprir a homenagem à língua que aquelas três mulheres inventaram, sozinhas, transformando o «centro de nevoeiro da língua portuguesa» (é essa a rigorosa expressão que empregas na introdução do teu livro Verdade Tropical) numa NASA do pensamento futuro. 

Uma dessas mulheres, Isabel, a mais discreta, morreu há dias; voltei a mergulhar nesse livro que foi o meu primeiro Brasil, e lembrei-me, além delas, de ti. 

Todas as aprendizagens da minha vida se reportam instantaneamente à imagem do Brasil, essa América desmazelada e bela, injusta, extremista, extremosa e genial. Foi assim desde Clarisse, de Erico Veríssimo, era eu meniníssima, foi assim desde que ouvi as tuas canções na voz de Bethânia, a irmã que tu batizaste e fadaste, e nelas encontrei o prazer de chorar, que é o prazer de absorver num segundo todo o saber e todas as contradições da existência. 

As Novas Cartas Portuguesas respondiam às famosas cartas de Mariana Alcoforado, detonando-as e projetando-as para o espaço sideral. Nada se perde. Nada se transforma completamente. 

Pensei nisso quando te ouvi, há dias, no Coliseu, cantar em sotaque português Libertação, um fado cantado por Amália, poema de David Mourão-Ferreira, que um dia me disse que o pior das ditaduras é a indústria de pequenos ditadores íntimos que geram, mesmo que trajados de revolução. 

Sentia que a elite das letras o censurava e desconsiderava por se dedicar a essa tarefa menor de escrever letras de fados. E aqui é que esta carta começa a dizer ao que vem: uma canção não é menos importante do que uma sonata de Chopin, só porque há mais gente a dizer o contrário. 

Nas tuas mais recentes entrevistas, declaras que ainda não fizeste aquela obra fundamental. Leste A Fera na Selva, de Henry James? É a história de um homem que tem o pressentimento de que alguma coisa de excecional lhe acontecerá – a tal fera que um dia saltará da selva para o surpreender. Só diante do túmulo da amiga com a qual partilhou essa expectativa durante a vida inteira se apercebe que a fera da sua existência era ela e estava ali, enterrada, definitivamente impossível. 

O teu sentimento parece ser o de que, entretido na selva a observar a diversidade da flora e a brincar com animais variados, te esqueceste de alimentar a fera que trazias dentro de ti; já não podes continuar a considerar «involuntário» o teu percurso na música popular – mas parece-te coisa pouca, voo de pássaro em vez de marca de fera. Ilusão criada pelo teu ditadorzito oculto. 

Não sei como dizer-te isto de modo a que acredites: «O lugar mais escuro é sempre debaixo da luz», canta o Sérgio Godinho, e por mais que te repitam que o teu trabalho – em letra, música e voz – representa para muitos milhões de pessoas a descoberta da selva e o encontro com a fera, continuarás a sentir-te aquém. 

Não faz mal, Caetano: é essa a verdadeira fera, a tua fera. Sem ela, não terias tido a necessidade de escrever mais nenhuma canção depois de É ‘Proibido Proibir’. Ou ‘Terra’. Ou ‘Sampa’. Ou ‘Língua’. Ou ‘O Homem Velho’. Ou ‘Livros’. Ou ‘O Herói’. Ou ‘Por quê’. Para só citar algumas, de cor – algumas que, ainda por cima, despidas de música, passariam à categoria dita absoluta da poesia. Conheço milhares de poemas publicados em livros que nem revestidos de Mozart conseguiriam abanar um neurónio. 

Não há elogios eficazes, bem o sei; o sentimento do aquém, só a morte no-lo apagará. O teu Novo Mundo herdou deste antigo o culto do cilício e o respeito pelo inimigo. Uma língua cheia de fossos, ferros, ameias, salões e pontes levadiças. Uma língua que o mundo aprendeu a amar através da música popular brasileira, como já escreveste. Não é coisa pouca, nem menor. 

José Miguel Wisnik, que apresentará (com Paula Morelenbaum e Gabriel Improta) uma aula-show sobre Tom Jobim e Vinicius de Moraes na noite de 17, no Casino Estoril, disse-me um dia que pensar na pessoa que tu és e em tudo o que tens feito lhe serve de antídoto imediato ao desalento. Acontece-me o mesmo. Com alguma sorte, encontraremos ao longo da vida meia dúzia de pessoas de quem podemos dizer isto. Com muita sorte, uma delas comporá canções que nos tornarão mais livres, mais exigentes e felizes.