“Champalimaud não era um ‘bicho do buraco’ só dedicado à fábrica ou a ganhar dinheiro”

António Champalimaud gostava do barulho das fábricas e sabia como funcionavam as máquinas. Depois do 25 de Abril perdeu a fortuna e exilou-se no Brasil. Jaime Nogueira Pinto, vindo de África, encontrou-o aí. Recorda as longas conversas sobre temas que iam de Napoleão à onça-pintada.

“Champalimaud não era um ‘bicho do buraco’ só dedicado à fábrica ou a ganhar dinheiro”

No início deste século, António Champalimaud (1918-2004) era o homem mais rico do país. Segundo a Forbes, a sua fortuna estava entre as duzentas maiores do mundo (em 153.º lugar). Obrigado a recomeçar quase do zero em 1975, conseguira reconstituir o império e até ampliá-lo nos 15 anos seguintes. Enérgico e combativo, gostava de aventuras, do jogo e do risco, mas não era aventureiro. Tinha feito fortuna com a empresa de cimentos herdada do tio, e depois na área da siderurgia e na banca. Com a morte de Salazar (que admirava) e a chegada de Marcello Caetano (por quem não tinha grande respeito) ao poder, um mandado de captura obrigou-o a exilar-se no México, onde montou o seu quartel-general. Absolvido no processo da herança Sommer (que dividiu a família), pôde regressar a Portugal. Mas não por muito tempo. Com o 25 de Abril, assistiu com tristeza ao fim do Império e viu as suas empresas serem nacionalizadas. Desta vez o destino foi o Brasil.

Jaime Nogueira Pinto, que já o conhecia, encontrou-o aí, num 21.º andar de um prédio no Rio de Janeiro, e com ele conviveu de perto durante cerca de um ano, estreitando uma relação que perduraria até à morte do milionário. Em António Champalimaud – Um Olhar (ed. D. Quixote), escrito a pedido da filha de Champalimaud aquando do centenário do nascimento do pai, Nogueira Pinto recorda esses tempos de convívio e reconstitui «uma vida feita de altos e baixos, de ascensões e quedas, uma vida longa, nunca serena, nunca sossegada, rica em combates, derrotas, vitórias».

Relata aqui um primeiro encontro com António Champalimaud, que não foi propriamente num restaurante de luxo…

Não foi o primeiro encontro – já o conhecia há bastante tempo. No Brasil, o António Champalimaud tinha a sede da empresa cimenteira, a Soeicom, no Rio de Janeiro, na Avenida Rio Branco, num 21.º andar. Nessa altura estava lá muita gente, até porque ele tinha um grande império industrial e bancário, também com companhias em Angola, Moçambique, etc., e de um modo geral foi procurando receber e ocupar sobretudo os colaboradores mais antigos. Num dos primeiros dias ele chamou-me e perguntou-me se tinha algum compromisso para almoçar. E diz com um ar de graça: ‘Naturalmente você não gosta dos sítios onde eu costumo ir…’. ‘Se é bom para o senhor também é bom para mim’, respondi-lhe. Fomos a uma lanchonete de rua, o Bob’s, que era onde ele costumava almoçar – embora naturalmente também fosse a outros sítios. Almoçava em pé em dez minutos. Não estava a fazer uma exibição de simplicidade – era assim, era um homem de trabalho, e embora também gostasse de boa mesa e de boa comida, isso não era para ele uma coisa essencial.

Já o conhecia de ligações familiares?

O meu sogro, quando começou a sua vida profissional, foi secretário do Dr. Salazar. E depois, como conhecia o António Champalimaud, foi trabalhar como ele para a Cimentos de Leiria, de que foi diretor, e mais tarde como administrador dos Cimentos Tejo. Portanto havia alguma relação. Nesse ano em que estive com o António Champalimaud no Brasil – fui da África do Sul para o Brasil no Verão de 75 e fiquei até ao verão de 76 – trabalhei com ele, quer no Rio de Janeiro, quer em fins de semana em que me convidava e à Zezinha e ficávamos na casa de Vespasiano. Uma casa bastante modesta…

E que tinha vista para uma fábrica!

Exatamente. [risos] A Soeicom.

Mas a ele não lhe fazia confusão, pelos vistos.

Ele adorava a fábrica. Ao contrário de outras pessoas que conheci, que não estudavam a substância dos negócios, ele sabia tudo. Ele costumava explicar que a fábrica de cimento era uma espécie de tubo digestivo: entrava por um lado o cascalho, a pedra, essas coisas todas, que iam sendo tratadas, e no final saía o cimento. Ele sabia isso tudo, sabia dos fornos, sabia dos motores. Há pessoas que têm barcos e sentam-se no barco e outros tratam de manobrar o barco. Ele não. Tinha barcos e percebia de barcos. Era uma pessoa que gostava das máquinas. E sou bastante independente nessa admiração porque nem sequer tenho carta de condução. Ele tinha brevet, era um homem de automóveis, era caçador. Não era um bicho do buraco que estivesse só ali dedicado à fábrica ou a ganhar dinheiro – não, era uma pessoa com mundo, com visão, um grande colecionador de arte, com uma casa muito bonita. Mas também, e essa era talvez a maior qualidade dele, sabia prescindir disso tudo.

Há uma frase muito gira em que ele diz que gosta de entrar na fábrica e ouvir o barulho das máquinas a trabalhar – enquanto no banco entra e está tudo silencioso.

Numa época mais adiantada, em que já não teria muitos anos de vida, eu visitava-o com alguma frequência, e quando comprou os bancos felicitei-o por isso. E ele diz-me: ‘Não tem graça nenhuma. Se eu tivesse menos dez anos voltava para a indústria. A indústria é que é bom, fazer coisas. O banco é ganhar dinheiro à custa de dinheiro’. Acho que estava a ser sincero. Era de facto um grande industrial, o grande industrial da geração dele, o que não quer dizer que não houvesse outras pessoas com esse sentido da construção e da problemática da indústria. Mas era um personagem fora do baralho.

Qual era a principal impressão com que se ficava dele num contacto pessoal?

Em 75, eu tinha 29 anos, ele tinha 57. Tinha fama de ser uma pessoa dura e difícil a trabalhar, mas foi sempre muito afável e bem educado comigo. Por exemplo, ele abominava o fumo do cigarro e a Zezinha, minha mulher, fumava – eu também fumava, mas saía do pé dele. E a Zezinha lá na casa dele disse-lhe: ‘António, tenha paciência mas se eu não puder fumar não venho, vem o Jaime’. E ele diz assim: ‘Mate-se lá, mate-se, fume à vontade’. Era uma pessoa muito especial, e impressionava até. Sempre muito magro, mas dentro dessa magreza fazia os desportos todos, caçava, nadava, velejava, fazia tudo isso.

Tinha essa aparência física frágil…

Não, não era frágil, era magro, seco. Mas comia bem, e até por graça às vezes dizia-se que era daquelas pessoas que são magras de ruins [risos]. São das pessoas que mais invejo, são as que comem e bebem o que querem e não engordam… Teve sempre aquela figura, magro, muito bem vestido, muito elegante, mas com um ar vigoroso.

Havia quem o acusasse de ser autoritário.

Era uma pessoa de autoridade, isso era. Houve pessoas que trabalharam com ele muitos anos – eu trabalhei um ano – e que me diziam: ‘Está-me a falar de uma pessoa que eu não conheci’. Admito que ele fosse diferente com outras pessoas.

Pode falar-me mais sobre esses fins de semana na casa dele?

Começavam sexta-feira à hora do almoço, eu ia do Rio, às vezes sozinho, outras vezes com a Zezinha, para Belo Horizonte. À hora a que o avião aterrava estavam sempre vinte graus. E depois voltava na segunda de manhã. Às vezes vinha um filho ou outra pessoa de fora, mas normalmente não havia mais ninguém e tínhamos essas longas conversas. O António Champalimaud tinha aquela qualidade que é, num assunto sobre o qual ele não soubesse quase nada, se se lhe desse as bases essenciais, ele fazia as perguntas mais originais, interessantes e importantes, e seguia a conversa. Lembro-me de uma vez falarmos sobre a razão de não haver grandes carnívoros na América do Sul. Com uma exceção, que era o jaguar, a onça-pintada. ‘A onça-pintada porquê? Porque é omnívora, come peixe, come tudo. E sabe nadar’, dizia ele. E era muito poderosa. Como Champalimaud dizia: ‘Com uma patada parte a cabeça de um crocodilo’. Mas ele contava isso com uma grande vivacidade. Depois havia uns personagens que o fascinavam – Alexandre, Napoleão, os grandes conquistadores. Sobre Napoleão lembro-me de uma conversa muito interessante. Eu, como era miúdo, dava grande importância à grande capacidade estratégica. O António chamava-me a atenção para a logística. ‘Aquilo funcionava tudo’. E mais tarde percebi que era verdade. Recentemente, por causa do livro Contágios [2500 Anos de Pestes], li que a Grande Armée tinha um serviço de saúde muito desenvolvido. Só que não aguentou, na invasão da Rússia [1812], a praga dos piolhos, do tifo.

Há quem diga que os franceses foram derrotados não pelos russos mas pelos piolhos.

Exatamente. Champalimaud tinha muita noção dessas coisas. Como homem muito ligado à coisa económica olhava para a logística. E a logística falhou a Napoleão. Na invasão e na retirada.

E mesmo na tomada da cidade.

Isso é muito engraçado. Quem mandou queimar Moscovo por ordem do Czar foi o pai da Condessa de Ségur, que na altura era governador da cidade. O Czar deu-lhe essa ordem e ele queimou os palácios de uma data de amigos, que ficaram a odiá-lo. A família veio para Paris precisamente porque o pai foi o homem que queimou Moscovo. Os amigos não lhe perdoaram.

É interessante esse fascínio de Champalimaud pelos predadores e pelos conquistadores. Possivelmente também era assim que ele se via, mas no campo dos negócios.

Sim. Ele herdou do tio Sommer os Cimentos de Leiria, que já na altura era uma empresa de grande liderança e de grande modernidade. Daí ele faz a siderurgia em Portugal. Trava-se uma grande luta no governo. Há uma linha que quer fazer a siderurgia no Norte, em Trás-os-Montes – o que seria, parece-me, um disparate. Mas era um lóbi forte e a dada altura o ministro da Economia, o Ulisses Cortês, diz: ‘António, é melhor você falar com o presidente do Conselho, se não isto não ata nem desata’. O António Champalimaud pediu uma audiência a Salazar, esteve duas horas – isso é ele que conta – submetido a um exame apertadíssimo, Salazar tinha estudado o dossiê, já sabia tudo de siderurgia. Salazar, diziam vários antigos ministros, era uma pessoa muito rigorosa…

Minucioso?

Que preparava as coisas, queria saber, perguntava. O António Champalimaud lá foi, lá falou, e percebeu muito contente que tinha ganho a sua causa. Salazar acompanhou-o à saída e pediu à criada: ‘O chapéu do Sr. Champalimaud’. ‘O Sr. Champalimaud não trouxe chapéu’. ‘Então traga o sobretudo do Sr. Champalimaud’. ‘O Sr. Champalimaud não trouxe sobretudo’. E Salazar, encolhendo os ombros: ‘Um homem tão rico, e não tem chapéu nem sobretudo. Mas o senhor é que sabe’. [risos] Aquelas piadas sarcásticas do Salazar.

A relação de Champalimaud com o poder político quase nunca foi pacífica. O que achava ele de Salazar?

Tinha muita admiração e respeito por Salazar, embora houvesse coisas com que não concordava. Por exemplo, dizia-me que Salazar tinha a mania de pagar tudo a pronto.

Até os barcos, não é verdade?

‘Jaime, você não percebe disso, mas o Dr. Salazar’ – dizia sempre ‘o Dr. Salazar’ – ‘pagava navios a pronto. Ninguém paga navios a pronto!’. Mas tinha uma grande admiração. Já em relação ao Marcello Caetano era muito crítico, porque foi com a vinda do Marcello Caetano que lhe passaram o mandado de captura no famoso processo da herança Sommer [Champalimaud foi acusado de se apropriar da herança do tio, Henrique de Sommer, que morreu sem filhos e deixou a cimenteira às irmãs e sobrinhos]. Achava, por várias razões, que o Marcello Caetano, ou o círculo de pessoas à sua volta, estavam influenciados por pessoas ou políticos ligados a outros grupos e aproveitaram a história da herança Sommer para o atingir. Sempre disse que preso não teria liberdade para comandar as empresas e foi aí que fez essa saída que descrevo com pormenor [da Amareleja para Sevilha, numa avioneta, de Sevilha para Madrid, e finalmente para a Cidade do México]. Quem organizou isso foram as duas filhas, a Luísa e a Cristina, e os genros. Eu também tive uma fuga de Angola para a Namíbia e depois passei várias vezes fronteiras aqui a salto, para dentro e para fora, portanto sei que normalmente, mesmo quando está tudo bem montado, há alguma coisa que falha. Mas depois acontece uma improvisação que acaba por corrigir o plano.

Há esses dois casos em que Champalimaud é acusado de ter enganado a outra parte: a herança Sommer e depois a compra do banco Sotto Mayor, em que teria usado um cheque sem cobertura que mandou depois pagar quando já era dono do banco.

O caso da Herança Sommer e a guerra familiar que daí veio foi uma coisa cuja lembrança o marcava muito e terá pesado na venda dos bancos aos espanhóis. Depois do 25 de Abril ele falava muito contra o facto de estarmos a descapitalizar o país, de as empresas estarem a ser vendidas aos estrangeiros, nomeadamente aos espanhóis – e depois no fim da vida fez isso. Acho que aí pesou essa guerra, sobretudo com o irmão Carlos, que dividiu dolorosamente a família. E não quis que isso se repetisse com os filhos. Portanto preferiu vender em vida e dar a cada um o seu quinhão, beneficiando as filhas, porque achava que os homens estão mais preparados para ganhar a vida.

Regressando às vossas conversas, sendo uma paixão comum, também falavam sobre África?

Sim, sim, sim. Curiosamente a grande paixão dele era Moçambique, quando nessa época estava mais na moda Angola, que naqueles dez últimos anos da administração colonial portuguesa teve um crescimento fabuloso. E a grande indignação com os capitães do MFA e de Abril vinha do que ele considerava uma descolonização nada exemplar. Hoje não se fala muito, mas Portugal não cumpre os Acordos de Alvor, que eram no sentido de mantermos o controlo até à transição e às eleições. Acho que os partidos portugueses, tirando o Partido Comunista, que mantinha a ligação ideológica ao MPLA, no fundo pensavam: ‘Isto era uma mania do Salazar, a gente não tem nada a ver com isto, agora é com eles’. Rosa Coutinho também teve culpas, porque deixou que cada movimento levasse 500 ou 600 homens armados para fazerem a segurança das lideranças, o que era manifestamente exorbitante, porque as forças portugueses dominavam Luanda. Esses 500 ou 600 homens pegaram-se rapidamente e foi isso que provocou todo aquele caos luandense e o abandono de muitos portugueses. Todas as pessoas do MPLA, da UNITA, de cada partido e independentes com quem eu converso em Angola são unânimes em dizer que essa fuga foi muito má, porque tirou ao país uma série de quadros e contribuiu para a guerra civil. E o António Champalimaud também era muito crítico disso e da classe política. Acentuava muito a questão da descolonização – embora achasse que tinha de acontecer mais tarde ou mais cedo – porque achava que tinha sido um salve-se quem puder, uma grande irresponsabilidade dos líderes partidários daqui.

Também há aqui uma frase sua muito crítica: «Mas da brandura dos discípulos de Pilatos feitos líderes da democracia portuguesa, das descolonizações ditas exemplares, iria correr sangue, e muito, só que em África, quando já ‘era só com eles’».

Essa foi a atitude, até um bocadinho saloia, porque as pessoas não tinham a menor noção do que era a força daquilo, e deixaram tudo de qualquer maneira. Os responsáveis militares portugueses que estiveram em Angola nessa fase final – Silva Cardoso, Gonçalves Ribeiro, Heitor Almendra – contaram o total abandono de diretivas da parte do poder aqui. O António Champalimaud era crítico disso. E também era crítico, naturalmente, das nacionalizações de 75, não só porque tinha sido prejudicado, mas também por causa de uma certa sovietização de algumas empresas. E depois acabamos no chamado modelo de capitalismo sem capital, que levou a que hoje não tenhamos praticamente nada. Isso era uma coisa que lhe doía muito. É evidente que se pode dizer: ‘Doía muito, mas vendeu o Totta aos espanhóis’. Acho que isso está razoavelmente explicado no livro. Não vendeu a outros grupos porque tinha a intuição de que tinham bases frágeis…

Pés de barro?

Foi o que a gente acabou por ver com o que se seguiu. O Daniel Proença de Carvalho, que o conheceu profundamente, fala numa intuição superior. Como nessas compras ele seria pago em ações desses bancos, preferiu, surpreendendo os envolvidos, fechar acordo com o Botín. Claro que depois fez aquele grande donativo para a Fundação Aljubarrota.

Para se redimir?

Para diminuir o que poderiam ser remorsos. E uma parte substancial do seu património não o deixou à família, deixou para instituir uma fundação que, em vários aspetos, é uma fundação modelo.

A família aceitou essa decisão pacificamente?

Toda a família aceitou, menos um dos filhos, que expressou reticências, sobretudo quanto ao modo como isso foi feito. Isso é público.

Falando ainda sobre África, ele não via contradição entre o que apreciava – a força da natureza, a beleza das paisagens – e o desenvolvimento da indústria e da economia?

Ele achava que o futuro da indústria era a Ásia. A Ásia ia ser a grande fábrica do mundo. Mas faltavam-lhe determinados minerais estratégicos e recursos petrolíferos. As duas grandes zonas mineiras eram o Katanga e o Transvaal, que estavam mais próximas da costa leste de África. A grande ideia do Champalimaud era que, no futuro, Moçambique pudesse funcionar, através da sua extensíssima linha de costa e de alguns bons portos, como base de transporte desses minérios e recursos. E com o desenvolvimento daí recorrente, fazer de Moçambique, como de Angola, ‘novos Brasis’.

Mas não via que isso pudesse destruir o encanto de África?

A Europa é que está sobreurbanizada. Em África, infelizmente, ainda faltará muito tempo para isso ser um problema. Apesar de tudo, os recursos ainda são muito grandes. Também não sou um negacionista da ameaça climática. Neste tipo de questões, defendo um certo desapaixonamento. Há pessoas que têm umas ilusões enormes. Acham que os cientistas sabem tudo, e eles próprios não se entendem. Aliás a comunidade científica nunca foi uma comunidade – é uma diversidade. Uns dizem uma coisa, outros dizem outra. E todos têm currículos respeitáveis.

Falou da coleção de arte. Os quadros estavam pela casa?

Estavam naquela belíssima casa da Rua do Sacramento, quase colada à residência do embaixador americano. Tinha, por exemplo, uma coleção de Boucher [pintor francês do século XVIII] muito bonita, tinha os Guardi, e aqueles tocheiros negros também muito bonitos. Um dia estava a perguntar-lhe a origem e ele disse: ‘Foram encomendados em Veneza para o Luís XIV’. Penso que tinha pessoas em Londres e Paris que lhe chamavam a atenção para certas coisas.

E orgulhava-se da coleção?

Sim, sim, mas era também um investimento. Um dia fui visitá-lo – ele tinha feito um escritório numa espécie de topo da casa –, e vejo atrás dele um quadro da Guerra da Crimeia que eu conhecia dos livros. Não era um grande quadro, mas era muito popular em Inglaterra. E disse-lhe: ‘Aquele quadro é o original?’. ‘Ó Jaime, aqui em casa é tudo autêntico. Você queria o quê, que fosse da loja dos 300?’.

No final, descreve-o doente, amargurado pela morte de dois filhos. Ainda mantinha a postura de uma pessoa com poder?

Sim, mantém essa postura praticamente até ao fim da vida. Claro que a partir de certa altura está a ver pior… Mas é uma pessoa lúcida, com autoridade e sempre muito interessada e interessante. Tive oportunidade de falar com pessoas que estiveram com ele em algumas negociações. Muitas vezes estavam convencidos de que eram os únicos. Nisso o António Champalimaud era um bocadinho parecido com o Salazar: falava com este, falava com aquele, não fazia grandes reuniões. Preferia uma certa bilateralidade. E às vezes encarregava mais de uma pessoa do mesmo assunto…

Recorda-se da última vez que o viu?

Fui vê-lo várias vezes, mas ainda com ele em pé, não o vi nos últimos meses. Estava ainda mais magro do que era antes, mas aguentou-se sempre bem, sempre com muita dignidade. Não se rendia.