Comemorações

Uma das consequências desta espécie de epidemia mental que se abateu sobre Portugal e a Europa sob a forma do pensamento único universal e correcto foi a exclusão da ideia da política como poder, como debate, como decisão e escolha do bom governo para a comunidade.  

Na esquerda, a fórmula do pensamento único é a proclamação do fim da política pela sua redução aos direitos económicos universais e absolutos para todos.

A questão de como continuar a prometer esse ‘país da Cocanha’ de abundância e tolerância totais numa economia-mundo que a própria esquerda idealizou não se põe. A retórica é que tal só não acontece por imposição de uns tenebrosos oligarcas financeiros, apoiados pelos seus cúmplices no poder – os políticos e as políticas ‘de direita’ – que sonham escravizar os pobres e reduzir à pobreza a classe média.

À direita, ou entre essa ‘direita’ festiva que por aí pontifica, oriunda da esquerda arrependida e veneradora do dinheiro, a política também não se ocupa do poder, do Estado, da nação, da comunidade. A política é não haver política, é reduzir à economia e à gestão todos os problemas políticos. É deixar os mercados funcionar e ver que tudo se arranja através das operativas mãos invisíveis. 

Estas tendências mais uma vez se confirmaram nas comemorações do golpe de Estado do MFA: a esquerda veio para a rua lamentar-se de que as ‘conquistas’ de Abril tenham atirado, quarenta anos depois, o país para o desemprego e para o salário mínimo mais baixo da Europa Ocidental – e inferior, com a correcção monetária, ao dos tempos da ‘ditadura’; e os devotos da ‘Comunidade internacional’, de que o salazarismo nos separava, gritaram palavras de ordem patrióticas, com os comunistas e os bloquistas a exaltarem a soberania e a independência nacional.

A tal direita da mão invisível, a direita libertária, que andava oprimida há quarenta anos, veio também, não sei se hipócrita se estupidamente, celebrar Abril, misturando com outras libertações a ‘restauração democrática’ (como se os democratas da Primeira República alguma vez respeitassem a liberdade dos seus adversários políticos monárquicos, católicos ou nacionalistas).

Há quarenta anos, o golpe militar pretoriano e o ensaio da revolução socialista que se lhe seguiu tiveram duas consequências: uma foi, no final de um complexo PREC, a criação de uma democracia liberal com objectivos constitucionais socializantes, a democracia em que vamos vivendo; a outra, muito mais importante politicamente, foi a redução do poder nacional, com a perda do Império e com os custos económicos que vieram da socialização violenta do 11 de Março e do ‘espírito socialista’ da Constituição.

Com estas perdas, perdemos – perdeu o país – a capacidade económica para pagar um Estado Social e garantir a independência financeira perante o exterior.

É esta a segunda parte da história que os comemoracionistas não querem reconhecer – por burrice ou conveniência.