Congo. O coração das trevas do bárbaro Leopoldo

Tornou-se dono particular de uma enorme fatia do continente africano onde, por causa da exploração da borracha, se praticaram alguns dos mais macabros movimentos de violência colectiva e se cortavam as mãos aos trabalhadores que não cumprissem as suas quotas.

De tempos a tempos, ignorando países e povos e lugares do mundo, a natureza ergue sobre a Terra uma daquelas criaturas execráveis que dificilmente se dissolvem com a passagem do tempo. Ora, Lepoldo II, Rei dos Belgas de 1865 a 1908, era um bom exemplo dessas bestas de 28 patas. Instalado no trono belga por herança de seu pai, Leopoldo I, trono que ocupou durante 44 anos e cumprindo, dessa forma, o reinado mais duradouro do país, conseguiu a proeza de, na Conferência de Berlim de 1884-85, levada a cabo para controlar as exigências coloniais de diversos países europeus sobre territórios africanos, estabelecer, com o apoio de Henry Morton Stanley, o homem que descobriu o dr. Livingstone junto às nascentes do Nilo, em Ujiji, impor o estatuto de potência colonial para um pequenino país de apenas 30.528 km2 e tomar para si próprio o que era conecido por Estado Livre do Congo, uma extensão enorme e rquíssima em, sobretudo, borracha, marfim e diamantes.

O Congo ainda hoje está lavado a sangue. E bem pode agredecê-lo a Leopoldo, que tomou a região para a sua esfera jurídica pessoal. Ou seja, o Congo nunca foi uma colónia da Bélgica; era simplesmente um colónia que pertencia ao Rei dos belgas. E o Rei dos  belgas não era flor que se cheirasse…

Leopoldo era um homem alto, imponente, de inteligência fina e de ambições desmedidas. Tabém sofria de priaprismo, o que pode ajudar a explicar algo sobre a sua contínua inquietação. Reinava sobre um país praticamente insignificante na geopolítica internacional e o seu súbito interesse por África, alimentado pelas descrições meio fantasistas de Stanley, que num dos seus famosos discursos chegou a proferir a tão poderosa como ingénua frase: «Há 40 000 000 de pessoas nuas do outro lado das cataratas, e os industriais têxteis de Manchester estão à espera de vesti-los. As fábricas de Birmingham estão a fulgurar com o metal vermelho que será transformado em objectos metálicos de todos os tipos e aspectos que irão decorá-los  e os ministros de Cristo estão zelosos de trazer as suas pobres almas para a fé cristã». Não, mr. Stanley, as coisas estavam longe de ser como o senhor as imaginava.

 

As fronteiras da Bélgica

«As nossas fronteiras nunca poderão ser alargadas dentro do espectro da Europa, contudo, desde os tempos históricos que as colônias são úteis. Elas podem desempenhar um grande papel naquilo que faz o poder e a prosperidade dos Estados. Vamos pois lutar para obtermos uma colônia nossa», bradou Leopoldo. E a Bélgica tomou o caminho de África. E do Congo.

Leopoldo, com a sua visão muito particular do negócio, já tinha tentado comprar grandes extensões de terra na Argentina, no Bornéu, nas Filipinas, no Vietname, na China e no Japão. Os nãos que ouviu eram maçadoramente repetitivos. A verdade é que procurava um recanto da terra onde pudesse estabelecer uma colónia e elevar a Bélgica ao estatudo de potência colinial.

Foi nesse período em que toda a gente lhe fachava a porta na cara que engendrou um plano que levou à implantação de uma das maiores carnificinas da história da Humanidade. Se se recusavam negociar com ele como Rei de um país, iria fazê-lo em seu próprio nome. E, como não seria de espantar, chamou Stanley para colaborar com ele, muitas vez sob nome falso para que o desenvolvimento colonial se desenvolvesse no maior silêncio possível.

Henry Morton Stanley, um dos melhores conhecodores do continene africano, passou a receber um ordenado de mil libras esterlinas por ano e instalou-se clandestino em Zanzíbar. A sua ideia inicial era simples e eficaz: avançar com a construção de linhas de caminho de ferro que, de tantos em tantos quilómetros, deveriam ser protegidas pelo fortes erguidos entretanto. Não tardou a receber um directiva de Leopoldo: «Não se esqueça que não estamos aí para montar apenas fortes e linhas férreas. Estamos aí para construir um país!».

A partir de 1883, Stanley aumentou o seu leque de responsabilidade. Subiu o rio Congo como o capitão Conrad de Coração das Trevas e foi esbanjando o dinheiro que o monarca lhe ia enviando para comprar aldeias inteiras e pedaços de território que, muitos deles, estavam há décadas sob disputa entre nativos. Ao mesmo tempo deparava-se com um adversário terrível, um tal de Tippu Tip, o maior esclavagista abaixo do Equador que, simultaneamente, devastava as aldeias que interessavam a Stanley com o ojectivo de vender os homens e mulheres que capturava.

Leopoldo tinha tudo para ser um canalha de altíssimo coturno. Claro que, por uma questão de conveniência, os dirigentes europeus que se juntaram na Conferência de Berlim de 1884-85 lavaram daí as suas mãos e permitiram-lhe fazer o que queria e apetecia nos terrenos que foi reclamando para si. A Europa ainda achava que havia mundo suficiente para que cada tiranete de meia-tijela pudesse usar e abusar dos indígenas que habitavam os territórios que invadiam a torto e a direito. Sem qualquer tipo de escrúpulos, Leopoldo foi protagonista de um nunca mais acabar de crimes levados por um exército de mercenários insensíveis que, a par da fome imposta aos escravos, fizeram desaparecer da face da Terra qualquer coisa como 15 milhões de pessoas.

O território dominado pelo infame Leopoldo rondava os 2.600.000km2, uma barbaridade se compararmos com a minúscula Bélgica. Antes de começar a verdadeira exploração da borracha, um bem cada vez mais essencial na socieade moderna, a organização do Estado Livre do Congo sofreu gravíssimos problemas económicos, na sua maioria por não haver um centralização da exportação das matérias. Leopoldo resolveu pôr as coisas nos eixos: libertou a exploração da borracha às empresas e individuais que quisessem avançar pelas densas florestas onde a matéria abundava, em troca de impostos firmes. Para os habitantes locais, foi o desespero. Sem controlo, os europeus que se lançaram na exploração do Congo até ao tutano capturaram-nos como escravos e usavam e abusavam do seu trabalho gratuito. Cada tentativa de fuga ou deserção era castigada com a ablação de um membro, geralmente um braço ou uma mão. Depois, as vítimas eram fotografadas e as fotos distribuídas pelas aldeias em redor de forma a servirem de exemplo e impedir as fugas através do terror. Entre 1861 e 1906, as empresas que conseguiam contratos de concessão faziam aquilo que lhes dava na real gana sem que Leopoldo estivesse minimamente preocupado com isso. Como também não quis nem saber das epidemias que arrasaram a população local,desde varíola, desinteria ou peste suína.

Inevitavelmente, a situação que se vivia no tal Estado Livre do Congo caiu sob a alçada da política internacional. Os relatos, as fotografias eram demasiado evidentes para não deixarem ninguém indiferente. As críticas começaram a surgir, os_Estados Unidos propuseram uma investigação in loco para se actualizarem sobre as atrocidades cometidas, Leopoldo dos belgas começou a sentir-se desconfortável e optou por um gesto de apaziguação: anexou o Estado Livre ao vizinho Congo Belga e estabeleceu que, a partir daí, as autoridades policiais belgas seriam responsáveis pela segurança de todo os cidadãos da colónia sem distinção de cor ou credo.

Mas, convenhamos, por muitas que fossem as tentativas de maquilhar a situação, não havia quem pudesse esquecer os desvarios de La Force Publique (na sua maioria composta pelos canibais de Lualaba) e do seu comandante Léon Fiévez que os autóctones conheciam como o Diabo do Equador.  De cada vez que punha fim a alguma rebelião ou escaramuça, Fiévez exigia que fossem cortadas as mãos direitas dos derrotados, estivessem eles vivos ou mortos. Depois traziam-lhe uns cestos cheios de mãos e ele, pacientemente, fazia as contas. Na aldeia de Boyeka resolveu obrigar os homens a violar todas as mulheres, mesmo que se tratasse de mães ou de filhas. Depois encerrou-os numa enorme bolha de rede e mandou amarrar a toda a volta uma série de pedregulhos antes de os atirar ao rio e ficar, consoladamente, a ver os seus baldados esforços para se salvarem. Coleccionar cestos cheios de mãos tornou-se numa espécie de jogo: cada pelotão queria apresentar números mais altos do que os outros. Pela primeira vez, Leopoldo II aborreceu-se com tamanha estupidez, embora não tenha sido propriamente movido por bons sentimentos: «Cortar-lhes as mãos?! Que atitude mais imbecil! Eu, se pudesse, cortava-lhes o resto do corpo, mas as mãos, nunca! Afinal é a única coisa que preciso deles no Congo!».

A frase ilustra bem a cavalidade do monarca. E permite perceber como a lei estava longe, longe, desse Coração das Trevas. Enquanto os trabalhadores eram triturados pela violência obscena de La Force Publique, o clero, representado pelos missionários, dedicava-se igualmente a uma tarefa sinistra. De aldeia em aldeia, os padres escolhiam as crianças mais saudáveis e, simplesmente, levavam-nas consigo para os seminários. Poder-se-ia pensar que seria para o seu bem, mas essas centenas de petizes não seguiam os caminhos da educação. Eram minuciosamente preparados para se tornarem soldados fiéis ao Rei Leopoldo. Mas, até aqui, as estatísticas eram assustadoras e ficou provado mais tarde que a morte levava, em média, 50% destes miúdos retirados às suas família.

No seu cadeirão de Bruxelas, Leopoldo recebia relatórios frequentes sobre o estado das coisas, ou pelo menos sobre o estado das coisas que era possível relatar. No regresso do correio, exigia o aumento significativo da recolha da borracha. Precisava do dinheiro para as suas excentricidades e não aceitava que tudo o que investira não desse lucros gordos. Implementou uma espécie de rivalidade entre as várias identidades que exploravam os terrenos que, por sua vez, caíam sobre os escravos culpando-os de não serem capazes de recolher quotas suficiente para agradar ao Rei.

Quando Joseph Conrad publicou Heart of Darkness, em 1899, e Arthur Conan Doyle, The Crime of_Congo, em 1908, muitos dos seus leitores ficaram profundamente chocados com as imagens de violência expostas pelo autor. Três anos mais tarde, quando se passeava na sua carruagem aberta, Leopoldo foi vítima de um atentado perpetrado por um anarquista italiano chamado Gennaro_Rubino. Nenhum dos três tiros de Rubino acertaram na real figura, o que não abona nada a favor da sua pontaria. Mas o aviso estava feito. Leopoldo tinha a sua imagem marcada pelas atrocidades a que o Congo era obrigado a sujeitar-se em nome de uma avidez sórdida pelo dinheiro. A fortuna pessoal do Rei dos belgas era incalculável quando, em 1808, por força das pressões externas, o Congo deixou de ser uma colónia privada e passou para o domínio da Bélgica em si.

Leopoldo caiu do alto do plinto da sua estátua e a queda foi tão violenta que destruiu o que sobrava da sua saúde.Um ano mais tarde estava morto. A partir do momento em que o Parlamento tomava para si a responsabilidade da organização do poder na colónia, já o negócio da borracha na região caíra para número infinitamente mais pequenos, sobretudo por via a concorrência da borracha vinda da América Latina e, sobretudo, da região do Amazonas.No dia 17 de Dezembro de 1909, Leopoldo já abdicara da coroa em nome do príncipe Alberto, seu filho. À medida que o cortejo funerário ia percorrendo as ruas da capital da Bélgica, Leopoldo Luís Filipe Maria Vítor de Saxe-Coburgo Gota, Grão-Mestre da Ordem de Leopoldo,Grão-Mestre da Ordem da Coroa, Grão-Mestre da Ordem de Leopoldo II, Grão-Mestre da Real Ordem do Leão, Grão-Mestre da Ordem da Estrela Africana, Grã-Cruz de uma infinidade de ordens dos mais diversos países do mundo, inclusive das lusitanas Grã-Cruz da Ordem da Torre e Espada e Grã-Cruz da Ordem de Cristo, antiga Sua Majestade Sereníssima, o Soberano do Estado Livre do Congo, devia remexer-se de um lado para o outro da urna se tivesse espaço para isso. Os belgas, seus súbditos, não mostravam qualquer tipo de pesar pelo seu desaparecimento. Pelo contrário. Havia muitos que se penduravam nas árvores e nos postes de electricidade para poderem assobiá-lo e vaiá-lo à sua passagem. A morte não os apaziguara com uma figura tirânica que envergonhou a imagem do país pelas mais diversas situações. O Rei do Congo ia a enterrar com as mãos cheias de sangue até aos cotovelos. As mãos que ele fazia questão de coleccionar, quando lhe chegavam do Coração das Trevas…