Difamação

Quando sofre de falta de imaginação, o cinema americano volta-se para a sua própria História ou para a História do país.

os surtos de desinspiração têm sido frequentes, porque felizmente o talento não se cria por decreto nem floresce a poder de dólares; o melhor filme americano que vi no último ano foi desenhado e produzido por um português – paulo branco, que juntou cronenberg e don de lillo para criar essa obra-mestra sobre os tempos que vivemos que é cosmopolis.

argo, lincoln ou hitchcock são reflexões sobre a história da américa; nenhum deles é um filme de génio, mas em todos eles brilha aquele profissionalismo escorreito que é o segredo do sucesso americano – aquilo que em português se define pela palavra ‘brio’, em franco desuso.

e todos eles representam uma capacidade de pôr o dedo na ferida – seja ela a política, o sistema económico dela decorrente ou a arte – sem a qual nada avança.

em portugal, o passado é sistematicamente agigantado ou esquecido, fórmulas simétricas de escape e negação. evitamos o confronto, acreditando que a harmonia nasce dos paninhos quentes e da morna lamúria.

entre os múltiplos defeitos da sociedade americana não se conta a hipocrisia.

o filme sobre os problemas que hitchcock enfrentou para realizar psycho despertou-me a vontade de rever toda a cinematografia do autor.

mais do que o mestre do suspense, ele foi o mestre das motivações e dos instintos da natureza humana; desprezava os factos, o móbil do crime, que considerava mero mcguffin, isto é, pretexto para o desenrolar da acção.

em notorious (difamação), demonstra-nos como a fama que se cria sobre alguém pode conduzir a equívocos sucessivos, e até à morte. a personagem de ingrid bergman é sacrificada e deixa-se sacrificar por ser considerada devassa: a força da difamação (e do ciúme, que tantas vezes a mobiliza) é devastadora.

esse percurso em que quase se deixa assassinar redime-a porque, através dele, consegue também salvar a pátria – a boa consciência americana alimenta-se de finais felizes, mesmo que míticos e provisórios.

mas notorious, com todo o seu encanto, e apesar de todas as suas limitações (o tratamento do rio de janeiro como mero cenário de idílio branco, por exemplo), permanece um alerta arguto sobre os efeitos tóxicos da difamação.

ao interpor um processo judicial contra a agência de rating standard & poor’s por fraude, acusando-a directamente de ter provocado a crise internacional, o governo americano atinge o centro nevrálgico da tragédia que nos arrasta a todos: o terrorismo mortífero do diz-que-disse, que subverte e manipula a economia e faz explodir todos os valores que sustentam o sempre precário equilíbrio do mundo.

falta a portugal essa lucidez: em vez de acatarmos a infâmia (o caso bpn é o exemplo máximo disso) e aceitarmos imolar-nos aos que a provocaram, devíamos, para começar, denunciá-la e puni-la.

inespedrosa.sol@gmail.com