Disparo fatal de PSP arquivado

Levou a mão ao peito, abriu muito os olhos e jorrou sangue da boca antes de asfixiar até à morte. Segundos antes, Flávio Rentim, de 18 anos, fora baleado por um agente da PSP que diz ter reagido com medo de ser atacado pelo jovem, que parou de fugir e pôs “as mãos junto ao…

o departamento de investigação e acção penal (diap) de lisboa arquivou o processo (a 31 de julho) por considerar que o tiro fatal, disparado no fim de uma perseguição na estação de campolide, a 4 de agosto do ano passado, foi em “legítima defesa” e não resultou da “vontade ou sequer de qualquer descuido” do agente bruno gonçalves. este justificou-se com um gesto da vítima: pensou que flávio (que acabara de fazer dois assaltos com dois amigos, fugindo ao ver a polícia) estaria armado, já que durante a fuga pusera a mão no “bolso direito” ou na “parte superior das calças” (a descrição do agente e das testemunhas não é exacta).

a verdade é que flávio não tinha nem nunca exibiu qualquer arma, nem mesmo ao passar por dois maquinistas que o tentaram travar antes de saltar da plataforma. ao reconstituir os factos, o polícia alegou que o fugitivo terá ameaçado estas testemunhas com frases que admite não ter ouvido e, por isso, sacou a arma e fez o primeiro tiro de advertência para o ar. flávio não parou e saltou para a linha. ele seguiu-o, de arma em punho, mas caiu de bruços. quando viu que o jovem parou e começou a caminhar na sua direcção, pôs o dedo no gatilho, apontou-lhe a arma e garante ter dito “não mexe!”, duas vezes. neste momento, o agente, que permanecia deitado no chão, disparou um tiro certeiro na carótida. esta parte final da perseguição foi a única que as câmaras de videovigilância não captaram, tendo sido vista de longe apenas por maquinistas que tinham ficado para trás.

tiro foi ‘infortúnio’

“que outra razão haveria para flávio cessar a fuga e se dirigir ao agente que não fosse para o atacar, eventualmente com a intenção de lhe subtrair a arma de serviço?” – questiona a procuradora-adjunta ana trindade, argumentando que o jovem mostrou ser “perigoso” (tendo em conta os roubos anteriores) e “não ter medo do agente, uma vez que persistiu na fuga apesar das ordens de paragem e do tiro de intimidação”, momentos antes.

“perante a convicção séria de perigo para a sua vida, parece-nos que o uso da arma de fogo revelou-se absolutamente necessário”, escreveu a magistrada, acrescentando que a conduta do agente se enquadrou num “contexto de legítima defesa”, o que exclui o dolo.

por outro lado, apesar de admitir que o polícia podia ter feito um disparo para uma zona não vital da vítima, a procuradora argumentou que este “não tinha condições psicológicas nem físicas para, com frieza, calcular o disparo”. e concluiu, no despacho de arquivamento: “o infortúnio do sucedido deveu-se a uma infeliz conjugação de circunstâncias e não a qualquer acto doloso ou mesmo negligente”.

a verdade é que, numa primeira versão, o agente começou por escrever, no relatório sobre o uso de arma de fogo, que o tiro foi “involuntário”, “sem que estivesse à espera”, devido à perda de sensibilidade provocada pelo uso de luvas de couro (forradas a fibra de vidro) que tinha calçadas. esta versão foi alterada mais tarde, no auto de interrogatório, onde alegou que, embora sem tomar uma decisão consciente, disparou simplesmente para se defender.

confrontado com esta ambiguidade pelo inspector da inspecção-geral da administração interna (igai), que também abriu um inquérito, o polícia respondeu, por escrito, “inclinar-se mais para o facto de o disparo ter sido uma reacção instintiva de auto-preservação”. convencida de que a intenção do agente era, de facto, defender-se “face à ameaça que para si representava o suspeito”, a igai acabou por propor o arquivamento do caso, invocando “legítima defesa putativa”. restava saber se foi negligente, mas também aqui a igai afastou essa hipótese, pois a vítima “adoptou uma atitude ameaçadora e indiciadora de que transportava arma oculta”: “qualquer agente médio sentiria medo e reagiria da mesma forma”.

28 mortes em 10 anos

desde 2003, foram mortalmente baleados 28 cidadãos em perseguições policiais.’ à excepção de 11 processos, que foram arquivados, todos os agentes e militares foram punidos com penas de suspensão e até de expulsão.

sonia.graca@sol.pt