Ela abriu os olhos

Uma loja de Beverly Hills ostenta na montra o nome de Sócrates, entre os de Putin e Spielberg.

ela ouviu as outras mulheres no supermercado protestarem contra o futuro cabaz de compras, onde o leite com chocolate e os sumos pagavam mais iva do que o vinho.

ela viu no televisor aceso na loja deserta um noticiário da manhã, onde um especialista dizia que a cirrose hepática tinha duas causas fundamentais: o excessivo consumo de álcool e as hepatites víricas, nomeadamente a hepatite c. e que a cirrose estava a deixar de ser uma doença de velhos para ser uma doença de adultos jovens. o senhor doutor disse ainda que rapazes e raparigas começam hoje a beber álcool entre os 13 e os 15 anos.

ela abriu o rádio do carro e – embora mudasse de posto – ouvia, no debate da assembleia da república, todos dizerem que o orçamento que vai ser aprovado hoje é um mau orçamento. mesmo os que o propõem dizem que é um mau orçamento – mas é inevitável por causa da dívida externa, que atingiu números impensáveis.

ela abriu o computador e, entre as dezenas de e-mails que amigos e desconhecidos lhe enviam (e que nem sempre abre), reteve um: a fotografia de uma loja em beverly hills, a rodeo collection, que só recebe um cliente de cada vez, ao serviço do qual todo o staff fica o tempo que for preciso. a loja tem escritos na montra os nomes dos seus clientes mais emblemáticos. o primeiro-ministro de portugal, josé sócrates, encontra-se entre vladimir putin e steven spielberg. não parecia uma montagem. antes fosse.

ela recordou ter lido que, no último ano, as misericórdias portuguesas triplicaram o apoio a famílias carenciadas, algumas das quais empregadas mas a receber salários de miséria.

ela foi buscar os resultados dos exames cardíacos da mãe, que tem mais de 80 anos, mandados efectuar nos serviços privados de saúde porque os que têm protocolo com a ars só tinham vaga para dezembro.

ela pegou num jornal que, na orelha direita da primeira página, afirmava que o número de mulheres vítimas de violência doméstica em portugal já ultrapassa os números de 2009.

ela ouviu tocar o carteiro – e leu a carta que alguém lhe mandara. era um folheto com uma criança de mais ou menos dois anos, aparentemente a sorrir, que dizia: «preciso que cuides de mim».

trata-se de uma campanha da misericórdia de lisboa para angariar famílias de acolhimento. depois de ler todo o documento, ela ficou desesperada: as condições apresentadas eram exactamente iguais às dos últimos 10 anos. nada tinha mudado.

as famílias de acolhimento, em lisboa, são geralmente muito pobres de tudo, e sobrevivem dos magros euros que a misericórdia lhes paga por cada criança. quando os jovens chegam à adolescência, e dão problemas, mandam-nos para uma instituição e candidatam-se a acolher outras crianças mais pequenas.

ela conhecera dezenas de jovens nesta situação.

e este consecutivo corte de raízes fabrica marginais e depois criminosos.

ela fechou os olhos e abriu o coração. lá dentro encontrou um bando de netos mascarados de limões, romãs, múmias e outras coisas que não identificou.

abriu de novo os olhos e, sem abrir o livro, disse para se convencer: «bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque um dia serão saciados».

catalinapestana@netcabo.pt