Europeus à solta

A União Soviética contribuiu muito para a unidade europeia. Foi sem querer, mas contribuiu. Deste lado do Muro, a ‘ameaça vermelha’ concentrou os espíritos no desenvolvimento económico.

A República Federal da Alemanha foi resgatada, com perdão de dívidas de décadas e com planos de pagamento definidos em função da sua capacidade de gerar excedentes para cumpri-los. O acesso ao ensino e à saúde, assim como a política orçamental, distribuíram de forma mais justa a riqueza que se criava no Ocidente. Partilharam-se recursos nacionais nas Comunidades Europeias. E a presença americana suportou a defesa e ajudou a limar ou a reprimir divisões ancestrais na Europa. (Neste sentido os ‘europeus’ são parecidos connosco, portugueses – com tutela externa, americana no seu caso, fizeram menos asneiras do que quando à solta.)

Com a queda do muro de Berlim muita coisa mudou. Foi excelente para polacos, lituanos, estónios, checos, letões, eslovacos, húngaros, enfim, para os povos a Leste que recuperaram as liberdades perdidas. Mas a Europa perdeu uma fonte de unidade de objectivos. O Mercado Único e o euro apareceram então como projectos unificadores. A economia europeia no seu conjunto ganhou muito com estes projectos, mas a distribuição dos ganhos entre países e regiões nem sempre foi equitativa. Falou-se muito da boleia de que beneficiaram os países do Sul, com a descida das taxas de juro na segunda metade dos anos 90. Foi real, valeu milhares de milhões de euros, ainda que nem sempre bem aproveitada. A Alemanha e outros países do centro também ganharam. Com o Mercado Único, as economias de escala e de aglomeração em vários sectores industriais reforçaram a capacidade de atracção de recursos da economia alemã, recursos humanos e de capital até então geridos segundo perspectivas nacionais. O euro promoveu as exportações alemãs. Com a participação de países menos competitivos é uma moeda menos valorizada do que teria sido o marco.

No ponto da História europeia em que vivemos esta situação ameaça ruptura, por diferentes motivos. Há os países cujos ganhos passados estão a ser eliminados, em boa parte, pelos custos de ajustamento que agora enfrentam. Para esses países, estes custos certos que têm de suportar agora podem parecer superiores às perdas líquidas antecipáveis com a saída. O governo da Grécia pode vir a calhar a partidos com esta visão das coisas. Ou então, podem agitá-la como parte de uma estratégia negocial para melhorar a sua posição. Ameaçando com a ruptura esperam em última análise evitá-la. Dos países que suportam agora alguns custos para apoiar a periferia fica a dúvida sobre as suas razões últimas. Verificando-se que os países do Sul cumprem, finalmente, os compromissos orçamentais que assumiram, estão dispostos a aceitar políticas monetárias e orçamentais definidas em função dos interesses do conjunto dos países europeus? Ou, em alternativa extrema, pretendem uma Europa à sua imagem e semelhança?

Porém, na definição da posição de cada país não estarão presentes só argumentos de eficiência económica e sobre a porção da riqueza europeia que é gerada e aplicada em cada país. Há também objectivos redistributivos internos, mesmo que à custa do rendimento nacional, pelo menos no curto prazo. Por exemplo, na Grécia, entre credores e devedores ou entre sector público e sector privado. Em Portugal, argumentos de alguns defensores da saída do euro têm também elementos redistributivos deste tipo.

Finalmente há objectivos ideológicos. O compromisso dos dirigentes empresariais, sindicais e políticos europeus com o Mercado Único e com o euro é grande. Tem razões históricas e culturais. No fim até pode acontecer que objectivos destes prevaleçam sobre os económicos na definição dos novos (des)equilíbrios europeus.

Professor, Católica Lisbon-School of Business & Economics