Fama do cão de Sócrates galga fronteiras

É o livro mais falado do momento nos corredores da política. De autor anónimo, chama-se O Cão de Sócrates e transmite um olhar irónico, mordaz e canino sobre o primeiro-ministro

sócrates não se apercebe do estado sorumbático e acabrunhado do seu fiel amigo, mas, ainda assim, não o censura. «se este é o mesmo chefe de governo que durante meses e meses não se apercebeu de uma gigantesca e mortífera crise financeira que ia alastrando pelo mundo e pelo país como é que eu queria que ele se apercebesse da crise depressiva de um cão?», questiona o mais peludo habitante de são bento.

a história começa quando o primeiro-ministro, há seis anos, no início da governação, decidiu adoptar um canídeo para alegrar os corredores da sua residência oficial. o rafeiro de quatro patas, depois de uma infância passada na rua e entre caixotes do lixo à procura de restos de comida, chegou a são bento como um animal «carente, sem confiança própria» e «sem aquela coragem canina que os donos tanto apreciam» nos cães. mas o convívio com sócrates transformou-o por completo.

pelo menos ele assim o garante nas suas memórias recentemente publicadas. «foi em são bento que mudei de vida e de atitude. o contacto íntimo e diário com o primeiro-ministro transformou-me, fez de mim um cão novo, um cão moderno. observando o meu dono, seguindo os seus ensinamentos e copiando os seus gestos e acções com uma paixão canina, deixei de sentir que todos os outros cães me eram superiores e passei a considerá-los inferiores. deixei de os temer e passei a fazê-los sofrer. tal como o sr. primeiro-ministro, tornei-me um animal feroz».

o cão de sócrates, livro de um autor que se esconde sob o pseudónimo de antónio ribeiro, passa em revista os últimos seis anos de governo, narrados sob o ponto de vista de um cão imaginário. o resultado é uma prosa satírica, irónica e mordaz. apesar de o primeiro-ministro ser a figura central dos relatos e também o principal visado, muitos outros políticos – nacionais e internacionais – acabam por ser mordidos ou no mínimo abocanhados num ou noutro parágrafo.

a fama do «primeiro-cão» do país já galgou fronteiras e jornais como o el mundo ou o corriere della sera deram destaque à obra. o diário espanhol explica que o cão de sócrates está desiludido e acaba por citar o canídeo: «ao longo destes seis anos fiz tudo o que podia para agradar ao meu dono – abocanhei as canelas de alguns jornalistas, rosnei ao presidente da república, mordi à chanceler angela merkel, passei pulgas para os líderes da oposição e comi os jornais com notícias desfavoráveis. sacrifiquei-me pelo meu dono, mas para quê?». já a publicação italiana fala num «cão subversivo que abriu a torneira das revelações» e que «relata os erros e os defeitos do primeiro-ministro».

também nas redes sociais, o rafeiro governamental tem vindo a fazer sucesso e conta já com mais de mil amigos no facebook, onde vai publicando uma espécie de diário sobre as peripécias do seu dono.

no livro, a maior parte das polémicas que marcaram a governação de sócrates são recordadas através de um olhar canino e muitos episódios ganham mesmo novos ângulos de leitura.

o cão de sócrates conta, por exemplo, que foi ele quem roeu o certificado de habilitações do primeiro-ministro emitido pela universidade independente, que as páginas do sol são utilizadas para apanhar os seus cocós, que foi treinado para mudar o canal da televisão sempre que aparece manuela moura guedes – «aquela jornalista da tvi de boca enorme e olhos muito abertos» – ou que o primeiro-ministro se fechou numa sala no parlamento para ver várias vezes a repetição dos corninhos de manuel pinho dirigidos ao líder da bancada comunista antes de o demitir.

o caso freeport e a greve geral são outros dos momentos recordados nas páginas do livro. e nem sequer as perguntas que a comissão parlamentar de inquérito enviou ao primeiro-ministro sobre o negócio prisa/tvi foram esquecidas: «o meu dono estava extenuado. desde os últimos exames que fizera, via fax, na universidade independente, para terminar o curso de engenheiro, que não fazia uma directa nem estudava tanto».

a segunda versão do plano de estabilidade e crescimento e o respectivo acordo entre sócrates e passos coelho é um dos episódios mais marcantes desta biografia canina, mais não seja porque acentuou de forma drástica o afastamento emocional entre o primeiro-ministro e o seu cão.

aquando das negociações entre o chefe de governo e o líder do principal partido da oposição, o canídeo mais importante do país infiltrou-se na sala de reuniões com um plano para agradar ao dono, mas os imprevistos acontecem e os instintos mais básicos de um animal são sempre mais fortes do que as suas boas intenções. inebriado pelo cheiro a cadelas que emanava de passos coelho, o cão não se conteve e saltou para o seu colo.

sócrates não gostou de ver uma tal manifestação de afecto dirigida ao seu adversário político e depois desse incidente quebrou-se definitivamente o elo de ligação entre os dois. «enquanto o meu dono e o líder da oposição comunicavam aos portugueses, em folhas babadas por mim, mais alguns sacrifícios para 2010, eu era levado por um assessor para uma sala de são bento onde iria cumprir o castigo imposto pelo meu dono. mas como poderia eu saber que o líder da oposição e rival do meu dono tinha cadelas em casa?», lamenta-se o canídeo nas páginas do seu livro, acabando por confessar que o seu voto pende cada vez mais para passos.

por essas e por outras, o cão do primeiro-ministro é um cão deprimido, como o próprio confessa no início do relato dos seus anos em são bento. «há seis anos que sou o cão do sr. primeiro-ministro e o seu maior e mais fiel amigo de quatro patas apesar de, nos últimos meses, andar militantemente à procura de um novo dono. a verdade é que estou muito desiludido com ele. eu sei que cerca de 10 milhões de portugueses também estão desiludidos com o meu dono e muito provavelmente também eles estão a tentar encontrar um novo dono para governar o país». talvez perante esta reflexão, manuel alegre se veja obrigado a pensar: ‘é apenas mais um cão como nós’.

jose.fialho@sol.pt