Felgueiras, a capital da bota

Felgueiras é um dos três polos de produção de calçado em Portugal. Desde os anos 80 até hoje, o sector cresceu e internacionalizou-se, fazendo de Felgueiras o concelho português com a menor taxa de desemprego. O SOL visitou três empresas que são modelos desta vocação de conquistar mercados.

Na Felmini fazem-se 300 mil pares de botas de senhora por ano, cerca de 1.300 por cada dia útil, dos quais só entre 1 e 2% chegam às lojas nacionais. E 36% da produção vai para Itália, o país que é ainda o maior potentado no que diz respeito a prestígio na indústria. Não é por isso de estranhar que a marca não seja muito reconhecida nas ruas de Portugal.

“Em Itália adoram-nos”, conta Joaquim Moreira da Silva, que há 40 anos abriu em sociedade com o tio uma pequena fábrica inicialmente vocacionada para calçado para crianças, após ter abandonado o negócio da venda de peixe.

Duas vezes por ano, Joaquim Moreira da Silva desloca-se à rica capital da Lombardia, Milão, para participar na MICAM, que tem lugar no gigantesco parque da FieraMilano. Ali, o responsável da Felmini diverte-se a receber os 700 a 800 clientes ávidos por consumar negócio no stand fechado de 64 m2, com porteiro, bar aberto, presunto e petiscos. “Tenho um cliente austríaco que me chama sr. Bombástico. Diz que ganha muito dinheiro comigo”. A MICAM (a próxima realiza-se de 2 a 5 de Março) é a principal feira do sector do mundo, com cerca de 1.600 stands de marcas de calçado. Quem quer singrar neste mundo tem de lá estar, dizem os entendidos.

Em Felgueiras as fábricas fazem parte do tecido das ruas. São centenas, misturam-se com cafés, passam despercebidas ou estão inseridas em pequenos núcleos industriais às portas da cidade. A menos de 2km da Câmara Municipal, na fábrica da freguesia de Friande trabalham 190 funcionários a coser e colar botas, a juntar adereços, a envelhecer o cabedal, de acordo com um gosto instalado entre o country e o grunge, num processo que envolve muita mão-de-obra artesanal e uma enorme cadeia de produção.

Quase tudo é feito aqui, a partir de matérias-primas recebidas em bruto. O cabedal todo importado do Egipto, “de primeira escolha, que até se pode cortar pelo avesso, porque não tem marcas”, é amaciado, trabalhado, quer através da impressão com papel, para ficar, por exemplo, com um efeito dourado, quer recortado ou picotado, para obter um relevo de escamas. De acordo com as instruções de um designer italiano contratado pela Felmini, são aplicados adereços, correntes, fitas.

Desemprego em queda

Também graças ao bom momento da indústria do calçado, Felgueiras é actualmente o concelho do país com menor taxa de desemprego, fica-se com 10%, abaixo da média nacional de 15,3%, de acordo com os dados do último trimestre de 2013, e tem vindo a recuperar empregos de forma sustentada. Na fábrica da Felmini há um ambiente de prosperidade e boa disposição que o patriarca e o filho, com o mesmo nome e a trabalhar há 22 anos na fábrica, se orgulham de promover. Recordam a festa de Natal do ano passado, onde se comemoraram as quatro décadas de vida da empresa e onde os funcionários se divertiram até às cinco da manhã, com direito a concerto de Ruth Marlene, muitos cabritos assados e 12 minutos de fogo-de-artifício. “Gostamos de trabalhar muito, mas também de acarinhar os nossos colaboradores e a vida tem que ser divertida”, diz o fundador da empresa, conhecido como ‘o Sr. Moreira’, grande organizador de festas de arromba. “Temos tido sucesso porque as nossas colecções têm agradado”, resume Joaquim Moreira da Silva, filho, acrescentando que esse sucesso assenta também num processo de selecção natural em que “todas as primeiras amostras recusadas vão para a banheira”. É uma banheira verdadeira cheia de botas até ao bordo, um ex-libris. “Custa uma fortuna chegar à bota perfeita”, comenta. A Felmini orgulha-se de produzir botas que uma mulher tenha vaidade em usar, mas sem cansaço até as trocar pelas pantufas. O facto de uma bota chegar aos pés da cliente por mais de 140 euros é o resultado de tudo o que foi investido no processo de fabrico.

A Felmini Premium foi lançada há dois anos e nesta colecção cada modelo de bota vai dos 280 aos 320 euros. Não admira que seja difícil inundar o mercado português. Como se diz em Felgueiras, os portugueses não têm dinheiro para comprar sapatos portugueses feitos em Portugal. Os abonados não constituem suficiente massa crítica.

O prémio que a Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos (APICCAPS) ganhou recentemente à região de Champanhe fez da indústria de calçado um motivo de orgulho nacional, mas não há nada de verdadeiramente novo neste reino. Há décadas que Felgueiras é um centro de calçado. A novidade é que enquanto o resto do país definha, Felgueiras parece estar num ciclo invertido.O boom terá acontecido nos anos 80. Para a Felmini, fundada em 1973, o renascer e o início da sua actual história data do arranque do século XXI e tem a ver com o fenómeno conhecido e estudado da deslocalização, sobretudo para a grande fábrica da China.

“Há 12 anos demos a volta do retalho”, conta o Sr. Moreira (nome que é adoptado para se distinguir do filho homónimo). “Trabalhávamos com grandes marcas, tínhamos 15 a 20 clientes, mas eles começaram a fugir para o Oriente e começámos a sentir a falta de encomendas”. Aí, houve que inventar um plano B. “Criámos uma marca com colecção própria e decidimos vender directamente às lojas”. Estão em 35 países através de 28 vendedores que trabalham e são oriundos dos próprios países. Actualmente, na fábrica da Felmini só se produzem botas da própria marca para 2.200 clientes em todo o mundo. O que também significa que uma nota de encomenda pode ter apenas um pedido de oito pares de colecções que chegam a ter 100 modelos na colecção Felmini e 50 a 60 na nova Premium. É um trabalho que exige muito do departamento de encomendas e expedição.

Até agora nenhuma colecção falhou os objectivos de alimentar os 190 funcionários mais os 80 subcontratados para costura. “Não podemos defraudar o gosto dos clientes. Pomos muito cuidado no design”, conta Joaquim Moreira da Silva, que se prepara para passar uns dias em Itália a rever a colecção com o designer italiano (têm um outro em Espanha).

Entre outras particularidades, a Felmini criou um forro próprio, um tecido com riscas onde impera o amarelo, e que está registado. Um padrão que é copiado e que já levou a que a empresa movesse dois processos em tribunal. “É triste que copiem o forro, mas o que não conseguem copiar é a qualidade das botas”, resume o filho.

Também a Nobrand, com o slogan ‘There’s no brand like Nobrand’ vende quase toda a sua produção para o mercado estrangeiro. Mais precisamente, 98% dos cerca de 150 mil pares de sapatos que fabrica por ano. “Este mercado é tão gigantesco! Vamos a uma feira e percebemos isso. E eu penso sempre: ‘Como é que eu vou conseguir vender sapatos aqui? Mas a verdade é que chega lá um portuguesinho e vende. É quase um milagre”, comenta Sérgio Cunha, um dos dois sócios da Nobrand, marca que comemorou 25 anos a produzir sobretudo sapatos de homem e que no próximo Inverno terá, com peso igual na sua colecção, calçado para mulher.

Já em venda está a colecção para o próximo Outono/Inverno, cujos esboços saíram da inspiração hobo chic após “consulta nos blogues, em viagens, no que vamos ouvindo e através da inspiração que chega aos fornecedores”. Hobo chic é um vagabundo estiloso, sinal dos tempos.

Na colecção Nobrand não há sandálias. Em Felgueiras fazem-se sobretudo botas, informa Sérgio Cunha, salientando que há muito poucas semelhanças entre a confecção de uma bota ou sapato e a de uma sandália. “Fazer bem sandálias em Portugal sai muito caro. Isso é um terreno mais dos espanhóis”. E na região de Felgueiras é a bota que impera.

Handmade in Portugal

Tal como a Felmini, também a Nobrand tem passado despercebida aos consumidores nacionais. “O mercado português é muito pequenino. Cidades como Lisboa ou Porto poderão ter cinco ou seis postos de venda e é para um segmento alto”, reconhece Sérgio Cunha. As botas da próxima estação ostentam algo a que a recente campanha ‘O calçado português é sexy’ deu um impulso. Na dobra pode ler-se: ‘handmade in Portugal with love and care since 1988 ‘. “Um a denominação de origem que começa a ser valorizada cá dentro mas que é há muito lá fora”, assegura Sérgio Cunha. “Basta ver que na Nova Zelândia são loucos pela nossa marca. Fizemos uma viagem à Austrália e como acabámos por não conseguir ir à Nova Zelândia os nossos vendedores lá ficaram tristíssimos”. Mas se é nos antípodas que a imagem muito ligada a um estilo de vida próximo da natureza causa furor, é a Alemanha o mercado de eleição. “E é uma grande escola, porque é um público muito exigente que nos obriga a ir aos limites em todos os aspectos, desde as matérias-primas aos acabamentos. E como na Alemanha a defesa do consumidor está muito institucionalizada temos de dar garantias ao nosso produto”. Os sapatos Nobrand têm garantia e incluem instruções de melhor uso. “Temos um BI de cada modelo”, afirma Sérgio Cunha, que acrescenta que há pessoas contratadas como ‘testers’ para usarem as amostras e responder a uma check list de pequenos defeitos. “Nada é posto em produção sem grandes testes de qualidade prévios. Chegamos por isso a um conforto e durabilidade máximos”. A qualidade da produção da fábrica da Nobrand permite-lhe que outras marcas internacionais de gama alta a procurem. Em Felgueiras, a máquina que cola a sola a um sapato português é a mesma para um sapato da Armani Jeans. Uma das ambições da APICCAPS é que o ‘nome’ das nossas marcas atinja o estrelato das italianas, porque o resto já está cá deste lado.

A importância do engenheiro

Com escritório em Felgueiras, a Always não é uma fábrica, mas antes um intermediário, um facilitador. “Posso dizer que somos os únicos”, diz Paulo Martins, o seu proprietário. A Always é contactada por marcas internacionais para colocar nas fábricas de Felgueiras os seus modelos. É a esta empresa que cabe assegurar que os clientes fiquem satisfeitos. “Há o desenho que a marca nos dá e nós fazemos aquilo a que eu chamo engenharia. Que é pegar nesse desenho e encontrar as fábricas e os materiais para que o produto saia com a qualidade e o preço pretendido pela marca”. A Always faz prospecção, protótipos, estudos de mercado, estudo de matérias-primas e distribui pelas fábricas as encomendas para produção. “O nosso trabalho é tão difícil e tão valioso como o do designer que só faz o desenho”. Esta função de engenheiro era algo que Paulo Martins sentia que não existia e que serviu para abrir novas portas. “A Tommy Hilfiger trabalhou connosco 12 anos e agora todos os sapatos da Gant produzidos em Portugal vão passar por nós”. Nos próximos anos, 60 a 70% do calçado Gant vai ser feito em Portugal. Os restantes 30 a 40% serão produzidos em Itália e na China. A Armani Jeans é outro dos clientes e as fábricas de Felgueiras que produzem calçado desta marca fazem-no sob o controlo de Paulo Martins.

Paralelamente a este trabalho, a Always não resistiu a criar marcas próprias, seguindo uma tendência local de não fazer apenas o que os outros desenham. Só que, ao contrário daqueles que mascaram uma realidade 100% ‘made in Portugal’ com nomes ingleses (para efeitos de consumo externo), a Always apostou num emblema decididamente nacional. Tem a Catarina Martins, de senhora, e a Bernardo M., calçado de “estilo vintage, tal como é vintage o vinho do Porto”. São sapatos que apanham a boleia do prestígio do Douro e do port wine, como é conhecido lá fora. Com preços acima dos 150 euros, estima-se que 95% das botas Catarina Martins sejam vendidas no mercado internacional. Entre as clientes contam-se Elsa Pataki ou Shakira, que funcionam como embaixadoras da marca de cada vez que se deixam fotografar para uma revista cor-de-rosa. “As nossa marcas têm um BI”, diz Paulo Martins. E é essa identidade que faz o seu sucesso.

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