Herói da Guerra Colonial na pele de uma mulher

Carlos Matos Gomes é um dos soldados com mais honrarias em combate durante a guerra colonial. Entre 1967 e 1974, combateu em Angola, na Guiné e Moçambique. Liderou forças especiais de comandos, tropas de elite escolhidas para as missões mais arriscadas e inclementes – no Planalto dos Macondes não existia espaço para dúvidas políticas ou…

no verão de 1970, liderou o ataque à principal das bases inimigas da frelimo, em moçambique. a operação nó górdio, pensada por kaúlza de arriaga, foi a maior e mais cara da história da guerra colonial. mobilizaram-se mais de oito mil homens e, entre eles, todos os comandos, fuzileiros e pára-quedistas disponíveis. nunca se vira tal quantidade de abastecimentos, nunca se construíra tantas novas pistas para aviões, tantas estradas, nunca se comprara em tão pouco tempo tantas armas – mesmo que ao arrepio do embargo dos ‘países civilizados’ a portugal.

marcelo caetano convencera-se de que, conquistada esta grande batalha, moçambique cairia; e com ela talvez angola e a guiné. espalhados pelo planalto estavam perto de três mil guerrilheiros de samora machel, ali tinham as suas principais bases, ali era o coração da sua acção.

carlos matos gomes liderou o assalto à principal base inimiga da frelimo. e fê-lo com a mesma bravura que, em 1973, numa situação já desesperada, e com o estado novo em estertor acelerado, coordenou as operações corpo a corpo em cumbamory, no senegal. entre o nó górdio e a batalha com os guerrilheiros do paigc, perto da fronteira com a guiné, mediaram três anos.

poucos guerreiros como ele. dizia-se que não havia soldado que não quisesse estar ao seu lado – inteligente, rápido na decisão, corajoso, leal. perguntei-lhe certa vez, num almoço na associação 25 de abril, o porquê de ter estado sempre na primeira linha quando, por dentro, era contra a guerra, contra a ditadura, contra um país que não era o que sonhava. por que combatia, pergunta retórica para um militar que, em primeira análise, tem o dever de obedecer, mas a obrigação de pensar pela sua cabeça. por isso, fez o que tinha a fazer, ganhou medalhas de bravura e coragem, várias cruzes de guerra, distinção máxima de um guerreiro em combate. porém, ao mesmo tempo, deu o melhor para não atraiçoar as suas próprias convicções. lamenta-se por não ter estado em portugal no dia 25 de abril de 1974 – estava retido na guiné, onde fez parte da comissão coordenadora do movimento dos capitães e, já em lisboa, do mfa.

o soldado modelo.

muito cedo foi interno para o colégio nuno álvares, em tomar. daí para a academia militar. e da escola de oficiais embarcou para a guerra. um universo fortemente masculino que o marcou e moldou.

com a revolução regressou a portugal. reconheciam-lhe talento para o que quisesse, embora alguns talvez tenham duvidado do que alcançaria no futuro: era um guerreiro, um senhor da guerra cuja casa fora um campo de batalha. como se iria adaptar a um mundo que, na verdade, não conhecia? a um mundo onde o poder nos gabinetes se joga de um modo diferente?

chego então onde quero chegar.

porque ele, carlos matos gomes, fez da sua vida uma surpreendente viagem – onde se tornou num dos principais historiadores da guerra colonial portuguesa; onde aconselhou ministros e generais em questões estratégicas de defesa; onde se embrenhou na leitura como antes se camuflara nas matas africanas; onde fez da escrita uma descoberta constante de si próprio e dos outros; e onde é ‘refém’ de amizades com pessoas das letras, do teatro, cinema ou da pintura. sem nunca abdicar do que foi e construiu antes, dos camaradas de sempre.

quase como uma provocação assina os seus romances com outro nome, carlos vale ferraz. nó cego tornou-se num livro de culto, talvez a mais forte obra portuguesa com a guerra como pano de fundo. ajudou maria de medeiros a pensar no seu capitães de abril e, a partir de um livro seu, antónio pedro vasconcelos realizou os imortais.

porque lhe conto isto? por uma simples e extraordinária razão. é que depois de maria teresa horta, em várias conversas, o ter massacrado com a ideia de que os seus livros eram excessivamente masculinos, decidiu dar um passo tão arriscado como a invasão do planalto dos macondes ou o combate corpo a corpo de cumbamory – é que o seu último romance, já nas livrarias, está escrito na perspectiva de uma mulher, narradora que vê passar ao largo dos seus olhos grande parte dos acontecimentos que marcam o século xx português.

chama-se a mulher do legionário. é escrito por ele. por este homem de que lhe falei, um amigo para quem as mulheres têm, isso lembro-me de mo ter dito, uma qualidade única: a da perversidade. porque todas, ingénuas ou vividas, parecem ser unidas por esse fio ténue, essa qualidade intrínseca. sabem esperar pelo momento certo, têm a capacidade de se camuflar e de descobrir o que se esconde, por mais fundo que seja.

uma mulher e uma freira. sim, a narradora é uma freira.

um escritor a jogar no campo todo, a desafiar as convenções e a abrir o flanco para ser provocado pelos seus pares, militares e heróis de guerra. ele, que viveu uma vida entre homens, entre selvas e morte, desafia a lei da gravidade e mergulha fundo no universo feminino e na fé que morreu há muitos anos. não a perdeu nos tempos em que andava pela mão de sua mãe, baptizada de honorina como a santa francesa, mas nos outros. perder a fé foi um estilhaço de guerra de que nunca recuperou.

vou começar esta viagem, este livro. tomo a liberdade de vos convidar. a viagem de um herói de guerra por terrenos proibidos. ele é a mulher do legionário, ele é um desafio permanente.