Hitler como Senhor da guerra

O Führer era capaz de verdadeiros golpes de asa nas ofensivas militares, que apanhavam os adversários de surpresa. Mas não demonstraria o mesmo génio na defesa, arrastando com a sua lógica de ‘tudo ou nada’ a Alemanha para uma derrocada estrondosa.

Quando se pretende julgar a competência militar de Hitler, torna-se fácil oscilar entre dois extremos: o de considerá-lo como o homem de guerra genial que levou a Alemanha a acumular vitórias estrondosas num curto espaço de tempo; ou o de menosprezá-lo como o chefe de visão rígida, que empecilhou a competência dos seus subordinados, encurralando-os em situações insustentáveis e apressando assim o colapso final do Reich. Há verdade nestes dois juízos, só aparentemente contraditórios. 

Com efeito, se muitos dos sucessos da Alemanha no período de 1939-41 se deveram ao profissionalismo e à modernidade da sua instituição militar, há que reconhecer a intuição e o arrojo de Hitler também deram o seu contributo. Na primavera de 1940, a iniciativa de atacar a França através das florestas das Ardenas, julgadas impenetráveis por forças mecanizadas, desestabilizou toda a estrutura defensiva franco-britânica e decidiu no espaço de poucos dias o eventual desfecho da campanha. Hitler, como era seu hábito, arriscara no pleno, pois contramedidas rápidas e eficazes dos seus adversários poderiam ter feito gorar toda a ofensiva alemã. No entanto, o ritmo estonteante imprimido à operação, só possível devido à incomparável eficácia da Wehrmacht, levou ao rápido colapso da França. O «cabo boémio» – como lhe chamara Hindenburg – resolvera de uma penada o problema estratégico que atormentara o marechal e todo o alto comando alemão ao longo da guerra de 1914-18.

No início do outono de 1940 a possibilidade de invadir a Grã-Bretanha – hipótese em que o Führer nunca terá verdadeiramente acreditado – tinha-se gorado e logo a atenção predadora de Hitler se virou para a União Soviética. Neste último caso, tratava-se de um desígnio alimentado de longa data. Com efeito, a ambição de conquistar a Leste espaço vital (Lebensraum) para os povos germânicos era uma ideia já referida na primeira parte do Mein Kampf, publicada em 1925. 

Quando Barbarossa foi desencadeada, a confiança dos generais alemães era bem maior do que no início da campanha da França. No final de agosto de 1941, Hitler e Mussolini visitam Uman, na frente ucraniana. Diante das ruínas da cidade recém-conquistada, Hitler entusiasma-se: «O conjunto da Rússia cairá nas mãos dos meus soldados antes do inverno e na primavera [de 1942] novas conquistas esperam-nos nas fronteiras dos Urais, da Pérsia e do Mar Cáspio. A Ásia ficará finalmente ao alcance do Eixo». Mussolini, algo incomodado, tenta chamar Hitler à terra recitando então de um poema de Giovanni Pascoli: «E agora? Vamos chorar como Alexandre Magno pela lua?».

Mais rudemente, a lama de outubro, o gelo e a neve de novembro e de dezembro, a encarniçada resistência dos supostos «slawischen Untermenschen» (eslavos sub-humanos), levariam o Führer a uma mudança acentuada de comportamento. Mais do que nunca, a guerra a Leste passaria a ser ‘a sua guerra’: segui-la-ia dia a dia, debruçando-se obsessivamente sobre os menores detalhes da frente e oprimindo a iniciativa dos seus generais. 

Com a Alemanha acossada, a peculiar lógica de Hitler virá progressivamente à tona. Com efeito, logo no discurso que pronunciara no primeiro dia da guerra, Hitler prometera que o uniforme militar, que a partir daquele momento envergava, só o despiria após a vitória ou que, alternativamente, seria o mesmo a sua mortalha: Weltmacht oder Niedergang (potência mundial ou declínio) expresso na primeira pessoa. Assim, a obstinação e a rigidez empregues na defesa das conquistas do primeiro período da guerra, com resultados gravosos e por vezes catastróficos para as forças alemãs, devem ser entendidas à luz daquilo que Hitler considerava politicamente indefensável: o recuo estratégico ou, pior ainda, a procura de um compromisso com os seus adversários. Seja referido que a exigência da capitulação alemã sem condições, explicitada pelos Aliados em janeiro de 1943, veio facilitar-lhe a tarefa.

Hitler não demonstraria génio militar na defesa – o virtuosismo das manobras de Napoleão na campanha de 1814 foi-lhe estranho; no entanto, há uma lógica sombria na atitude rígida e inflexível dos seus dois últimos anos como senhor da guerra. Parafraseando Shakespeare, ocorre afirmar que, se bem que nele existisse loucura, indubitavelmente havia método na sua loucura. Reforça-se este juízo quando for reconhecido que, no final de 1941, o desaire de Barbarossa coincidiu com o desencadear da fase sistemática do Holocausto nos campos de extermínio. A tenebrosa ameaça proferida por Hitler no Reichstag (30.1.1939) iria concretizar-se: «Eu irei mais uma vez profetizar. Se o Judaísmo-Financeiro internacional dentro e fora da Europa conseguir mergulhar os povos da Terra em mais uma guerra mundial, o resultado não será a Bolchevização da Terra, com a concomitante vitória Judaica, mas antes a aniquilação da raça Judaica na Europa».

Seria necessário esperar pelo atentado de 20 de julho de 1944 para Hitler emular os hábitos mais despóticos de Estaline para com o alto oficialato. Mesmo assim, ao ajustar contas antigas com uma casta em relação à qual mantivera desde a tomada do poder uma relação ambivalente, o ditador nazi não conseguiu provocar nela nada que se comparasse ao visceral terror inspirado pelo comportamento arbitrário de Estaline quando este, através das purgas de 1937-38, decapitara o alto comando soviético. 

O fascínio pessoal do Führer não deve ser minimizado. Para bem aquilatar o ascendente e autoridade que Hitler manteve no seu círculo de poder, considere-se o caso da segunda figura do Reich, o marechal Hermann Göring. As capacidades de decisão e de coragem deste – fora distinguido no decurso da Primeira Guerra com a almejada condecoração Pour le Mérite -, a sua crueldade e megalomania, também, não eram pequenas. No decurso do Julgamento de Nuremberga, uma vez liberto da dependência da morfina, a liderança de Göring sobre todos os corréus emergiu com naturalidade na aula de audiências. No entanto, a dado momento, a sua pose descuidou-se e surgiu a confissão reveladora: «diante dele [Hitler] os meus joelhos transformavam-se em geleia».

De Gaulle refere que Hitler se tinha proposto levar a cabo uma «tarefa sobre-humana e desumana». Para a Civilização Ocidental, a memória da forma inflexível e cruel com que este génio sombrio prosseguiu os seus desígnios permanecerá nos séculos vindouros como o mais seguro antídoto contra o mortal veneno da tirania.