Macbeth. Lições de sangue, mas… frio, frio!

O director artístico do São João traz a Lisboa a sua primeira incursão na dramaturgia de Shakespeare, defrontando-se com uma das peças que inspira mais fundo no terreno da danação e do sobrenatural

Para uma tragédia em que é tão grande a carnificina, nunca o gosto do sangue nos vem à boca. A “peça escocesa”, é assim que ainda hoje se lhe referem os atores que cresceram com o teatro de Shakespeare elevado à condição dos mitos e lendas, mantendo viva a superstição face a esse apelido, como se proferi-lo fosse conjurar uma velha maldição. “Macbeth” chegou ao Teatro Nacional D.Maria II, depois de uma temporada no São João. A encenação é de Nuno Carinhas, responsável também pela cenografia e os figurinos. E se nesta apresentação da mais breve e vertiginosa tragédia do bardo inglês nunca nos escapa o empenho da produção, se parece reunir todas as condições para voltar a colocar em cima do palco fantasmas, sangue e magia, são as interpretações que sufocam sob a marcha das palavras, e a ação aparece-nos ritualizada, já não na brutal face de algo que abre à faca a ostra do nosso espanto, mas como uma memória, uma história capturada e manietada pelos seus ecos.

Há valores magníficos nesta produção, a começar pela “máquina de cena” que Nuno Carinhas concebeu. Em entrevista ao i, o encenador falou no esforço para que esta “correspondesse a essa velocidade da narrativa, para contê-la de uma forma que não fosse minimamente realista”. Se Shakespeare nunca esteve na Escócia, como refere Lampedusa no ensaio que lhe dedicou, soube convocar a sensação da sua “paisagem”, e isto sem uma linha de descrição. E isto leva o autor de “O Leopardo” a admitir que esta impressão paisagística seja conseguida através de um conjunto de alusões disseminadas, “reduzidas ao estado de poeiras impalpáveis” e “colocadas com tal mestria em relação ao enredo e ao caráter das personagens que se centuplica em eficácia”.

É neste capítulo que a atual apresentação de “Macbeth” se mostra mais conseguida. Com o espaço cénico sujeito a mutações constantes, e isto sem sacrificar o ritmo quase ininterrupto da peça, o desenho de luz e som produzem um feixe de sugestões que dão relevo àquela “paisagem espectral”, um ambiente sobrenatural em que a força da natureza se combina com a intensidade de pesadelo sobrepondo uma camada sobre outra de trevas.

“O espaço é fragmentado por cortinas”, diz Nuno Carinhas, “coisas que quase não têm materialidade, e por um chão vermelho, como se fosse terra, a aludir ao sangue. Aquela é a área de jogo. Não estamos a iludir ninguém quanto a isto ser uma história contada num palco, mas mesmo assim, tentamos levar o público a abstrair-se de que está a ver uma peça de teatro, para que possa ser atraído pelo destino das personagens”.

São as três bruxas que dão o tom, que, com as suas profecias, acendem o rastilho da mais terrível das paixões, desencadeando o género de fantasias de que a nossa mente se ocupa quando dá por si com um desejo de recriação criminosa. Felizmente, só uma minoria entre nós será alguma vez tentado por uma hipótese de grandeza ou poder de tal forma tentadora que seja difícil virar-lhe as costas, e mesmo aqueles que, à semelhança de Macbeth ainda avancem o peão duas casas antes de se comprometerem com uma jogada decisiva, terão menos ou mais sorte (depende inteiramente do ponto de vista) caso não tenham a seu lado uma mulher como Lady Macbeth. Se o general mostra ainda reservas morais, é ela quem o lança sobre o precipício, colocando em causa a sua virilidade: “Sacrificas/ Aquilo que mais preza a tua vida/ Ao prezado cobarde de ti próprio/ Cujo lema é ‘Não ouso mas bem queria’?/ Quer peixe o gato mas não molha a pata.” 

O homem que depois de anos se força ainda à mulher, tem de arrancar-lhe os beijos, lhe põe a mão sobre o ventre que não lhe dará jamais sucessão, e sente como mais árdua a prova em casa da sua valentia que já todos lhe reconhecem no campo de batalha… Que provas chegam a uma mulher assim? E é esta poderosíssima tensão que atraiu Nuno Carinhas a esta peça, estreando-se aos 63 anos nas lides shakespeareanas. “Uma das coisas mais fascinantes neste casal maldito é o apelo que ainda hoje exerce sobre o espetador. Mesmo que seja uma espécie de abismo moral, penso que uma pessoa acaba por esquecer-se do que isto representa em termos éticos”…

Começa tudo naquele casal, no enigma da sua relação, num conflito que só nos é sugerido, nesse pesadelo anterior, com a perda de um filho, esse trauma que para continuar submerso e não os devorar exige um sacrifício maior: lançar uma terrível distração, uma traição congeminada no leito contra todo um país, uma guerra para evitar que os dois se voltem um contra o outro.

Acontece que, na loucura, é cada um por si. E, com a sua aparente perfídia, Lady Macbeth, que será muito provavelmente a mais formidável das personagens femininas de Shakespeare, ao lançar o marido na perseguição da glória, com um plano desastroso que é claramente o sinal de uma fuga, não deixa de perdê-lo, e para o monstro cuja sede sanguinária ela mesma acirrou.

Infelizmente, e se há quadros belíssimos nesta peça, momentos raros de silêncio em que aquela luz esculpindo na pedra dos atores em palco perfis quase perenes, assombrações palpáveis, são as palavras que os atraiçoam. Já outros viram esta peça e saudaram as interpretações, afirmando que todo o elenco é convincente, e que João Reis como Macbeth é um dos pontos altos da peça. Deste lado, diríamos justamente o oposto. Notando como a tradução de Daniel Jonas se impõe como um dos protagonistas da ação, dando uma graciosa volta ao inglês para que os atores não fiquem com aquele ar empertigado dos tolos a imitar atitudes e modos espiados muito de longe, mesmo se o português tem vida própria, é uma pena a forma como os atores parecem surdos para as próprias palavras que dizem. Como se as declamassem perdidos numa lengalenga, num exercício de trava-línguas. O elenco sucumbe às palavras, e é penoso ouvir João Reis passar insensivelmente por cima de alguns dos versos mais memoráveis de Shakespeare como um faquir a passar por cima de uma cama de pregos. Quando nos diz que tem escorpiões dentro da cabeça, somos obrigados a relevar, pois tal o veneno dos bichos que lhe tenha paralisado as feições, e impedido de traduzir na expressão a tortura que a mente provoca a alguém que foi desapossado de todos os seus antigos valores, um homem à deriva dentro de si mesmo.

A peça, que foi escrita para elencos com 20 ou 25 atores, teve de ser cortada e distribuída por 11, e nem com boa vontade deixamos de sentir os cotos, as mutilações. Se o espetáculo se empenhou na fidelidade ao locus horrendus deste “poema da noite”, parece que depois se fiou na capacidade desse ambiente para impressionar de tal modo os próprios atores que estes fossem como que possuídos por toda aquela fantasmagoria.

Se, como ensinou Shakespeare, a rapidez exige rapidez, a lentidão igual lentidão e o semelhante paga o semelhante, esta peça parece só ter duas velocidades: depressa e depressinha. É demasiado literal na sua rendição à ideia de que a vida é um conto contado por um tolo, som e fúria, que nada quer dizer. Lembra certa frase que um outro poeta (Lenz) escreveu: “Fugia-lhe a vida, e os seus membros estavam inteiramente rígidos. Falava, cantava, recitava passagens de Shakespeare, lançava-se em tudo isso que noutras ocasiões tinha feito correr o seu sangue mais rápido, nada havia que ele não tivesse tentado; mas… frio, frio!”