Marraquexe fora de portas

Marraquexe não é só a Medina. Está cercada por bairros novos, entre os quais o famoso Hivernage, sempre com o Atlas à vista com os cumes eternamente cobertos de neve

MARRAQUEXE fica num extenso planalto, rodeado pelas montanhas do Atlas, cujos cumes estão eternamente cobertos de neve. De muitos pontos da cidade se podem ver com nitidez os montes vestidos de branco.   

Fora da Medina o ambiente é radicalmente diferente da babilónia do interior. Largas e compridas avenidas, ladeadas por edifícios novos, fazem-nos sentir numa cidade ocidental. Não se veem arranha-céus. E algumas construções fogem à cor dominante, o rosa salmão, que marca poderosamente Marraquexe. Sendo a terra ali avermelhada, os edifícios parecem nascer do chão, feitos daquela massa.  

Os bairros novos – como o bairro da Polícia – têm prédios com bom aspeto e um ar limpo. A ideia de Marrocos como um país sujo foi quase completamente erradicada. Não se vê lixo no chão, não há papeis a voar nas ruas e os jardins estão impecavelmente tratados. 

DESTES BAIRROS fora das muralhas o mais luxuoso é o Hivernage, onde estão os grandes hotéis, os bancos, as lojas de marca – Starbucks, McDonald’s, Zara, Hertz, H&M, Louis Vuitton, Gucci, etc. -, os centros comerciais, as sedes das grandes companhias e os apartamentos e moradias da burguesia endinheirada. A construção é de excelente qualidade e tudo tem ótimo aspeto. 

Neste seleto bairro vivem também os judeus que ficaram em Marrocos e não partiram para Israel em meados séc. XX, quando se formou este Estado. E muitos foram-se embora nessa altura, porque também em Marraquexe os judeus foram durante muito tempo discriminados: não podiam construir casa fora do bairro que lhes estava destinado na Medina, e sempre que de lá saíam tinham de andar descalços. 

No fim do bairro de Hivernage, não há mais construção. Apenas um enorme palmar a perder de vista, com milhares e milhares de palmeiras. 

As palmeiras são mais esguias do que as nossas e têm as copas mais ralas. Aí também se encontram os negociantes de camelos, não para os vender ou trocar por mulheres, mas para proporcionar passeios aos turistas. Pequenos grupos de dromedários tentam abrigar-se às sombras frustres das palmeiras. 

NOUTRA ZONA da cidade, fora das muralhas da Medina mas encostado a elas, fica o Palácio El-Badi, construído pelo sultão al-Mansour que derrotou os portugueses em Alcácer Quibir, e edificado em homenagem a essa vitória muçulmana na Batalha dos Três Reis. 

O palácio está semi em ruínas, pois foi saqueado um século depois da construção, mas transmite uma ideia de força e de poder, e há o simbolismo ligado à nossa desgraça. Os pomares de laranjeiras existentes dentro dos seus muros apresentam uma curiosa solução: são enterrados de modo a ver-se todo o espaço da grande praça central. Nunca vi essa solução em nenhum outro local. 

AINDA FORA das muralhas fica o Jardim Majorelle, famosíssimo por ter pertencido a Yves Saint–Laurent. As bichas para a bilheteira e para a entrada são enormes. É a força das marcas no mundo globalizado de hoje. 

Quando lá chegámos, perdemos a vontade de entrar: iríamos ficar horas na bicha. O motorista do táxi que nos transportou ofereceu-se, então, para nos comprar os bilhetes, dizendo ter prioridade. Passámos-lhe o dinheiro para as mãos (cerca de 30 euros), fomos por sua indicação para a porta de entrada do jardim e ficámos à sua mercê. Nada o impedia de fugir com o dinheiro. Mas passados uns 20 minutos o taxista lá apareceu, apresentou-nos a um homem com uma braçadeira e este introduziu-nos no jardim. Nunca vimos os bilhetes. Presumimos que o seu valor foi dividido entre o taxista e o da braçadeira. Ambos enganaram os donos do jardim, mas não nos enganaram a nós, que lá entrámos.

O JARDIM MAJORELLE é um espaço murado, completamente recheado de plantas, com estreitos caminhos para peões, que vale sobretudo pelos catos, alguns de altura descomunal. De resto, não tem muito de especial. Ele serve uma casa pintada de um azul forte, onde viveram Saint-Laurent e Pierre Bergé, e em cujo rés-do-chão está hoje instalado um museu. 

Este jardim, embora de outro modo, e numa escala muito maior, inspira-se nos famosos riads, um dos ex-líbris da Medina de Marraquexe. No fundo, eles são o ‘original’ do pátio sevilhano – ou seja, pátios no meio das casas, com plantas, latadas e fontes, onde se faz uma pausa no calor sufocante do Verão. Boa parte dos riads estão hoje transformados em hotéis boutique. Só na Medina há 800! Os riads são também pontos de paragem obrigatória dos turistas às 5 da tarde para tomarem um chá de menta. 

Uma referência ainda para o único hotel de luxo que fica dentro das muralhas da Medina, embora encostado a elas: o super famoso La Mamounia.

OBRIGATÓRIA também é uma visita às montanhas. Alugámos um jipe com condutor que nos conduziu por uma estrada que seguia junto a um rio de águas vermelhas, como se trouxessem sangue. Junto às margens do rio, mesmo a tocar na água, havia sucessivas esplanadas repletas de cadeiras de plástico. O aspeto era bastante sórdido para ser um local destinado a turistas. Para lá irá a população local nos dias quentes, a fugir ao braseiro da cidade. 

Ligando as duas encostas entre as quais corre o rio há inúmeras pontes, umas muito primitivas, de filme de aventuras, feitas com arame e tábuas, outras mais modernas mas rudimentares, de tubo de ferro. 

As montanhas têm um ar selvagem. À medida que subimos vamo-nos aproximando dos cumes gelados e o frio aumenta. Quando chove, a água escorre anarquicamente pelas montanhas abaixo, forma aqui e ali cascatas, fisgas e ribeiros, que passam sem cerimónias por cima da estrada e prosseguem depois caminho encosta abaixo. 

PARA LÁ do homem do táxi no Jardim Majorelle, que ficou com o dinheiro dos bilhetes mas não nos enganou a nós, quem mais tentou explorar-nos foi um miúdo dos seus 13/14 anos, que na montanha nos mostrou uma casa supostamente de uma família berbere. Embora o rapaz nos dissesse que habitava ali, a casa era demasiado pobre para ainda viver lá gente. Tinha o chão de terra, uma espécie de cozinha aberta com um fogão de lenha onde qualquer coisa fervia ao lume numa panela, sob a vigilância de uma mulher, enquanto um homem comia sentado a uma mesa e o miúdo nos mostrava as divisões. Os quartos tinham o chão totalmente forrado com kilins. No fim, o rapaz conduziu-nos a uma loja onde nos pediu por uma pequena peça de cerâmica – a miniatura de uma tagine – a astronómica quantia de 180 dihrams (18 euros). Na Medina a mesma peça custava 20 dihrams, nove vezes menos!

Fora isso, nunca me senti enganado. Eles gostam de discutir os preços, mas têm regras. E em nenhum momento nos sentimos inseguros.

E assim termina o relato de uma semana numa cidade medieval, onde se cruzam mulheres de cara tapada e homens vestidos com túnicas bíblicas, rodeada de prédios novos e tendo sempre no horizonte montes com os cumes brancos. 

Montes de neves eternas que formam um estranho contraste com a areia quente do deserto – pois Marraquexe é a última grande cidade marroquina antes do Sahara.