Missa cantada e de corpo presente

‘Quem esperava uma rutura com o passado estava enganado’. São elucidativas as palavras de Pedro Nuno Santos no final da aprovação das listas para as legislativas de 10 de março. A renovação só começará a partir daí. Em qualquer dos casos. E será feita com tempo.

Em julho de 2021, quando era ainda ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva deu uma entrevista ao Expresso que tinha como título «Espero que o PS me permita voltar à minha profissão». Na altura, António Costa governava com minoria parlamentar, já sem ‘geringonça’, por rutura com o BE, mas com o apoio do PCP, sendo que ainda ninguém – tirando provavelmente o então secretário-geral socialista – imaginaria que a proposta de Orçamento do Estado para o ano seguinte seria chumbada, abrindo uma crise política que culminaria na segunda maioria absoluta do PS.

Santos Silva estava então em vésperas de completar 65 anos de idade, ou seja, a muito pouco tempo de poder meter os papéis para a reforma, e eram recorrentes as notícias sobre uma eventual remodelação governamental que não chegou nunca a efetivar-se, porque entretanto PS e PCP extremaram posições sobre a proposta de OE para 2022, que viria mesmo a ser chumbada, motivando a primeira dissolução da Assembleia da República decretada por Marcelo Rebelo de Sousa com a consequente antecipação de eleições.

Recordista em tempo de funções governativas em democracia, Augusto Santos Silva acabou por sair do Governo diretamente para a presidência da Assembleia da República, depois de confirmada a maioria absoluta do PS nas eleições de janeiro de 2022.

E passaram mais dois anos. Isto é, já atingiu a idade da reforma, está a pouco mais de um ano da jubilação compulsória (se o limite legal continuar nos 70 anos) mas, e eis a surpresa, ainda não é desta que dará o seu lugar a alguém mais novo nas listas de candidatos a deputados do PS às eleições de 10 de março.

Santos Silva apoiou José Luís Carneiro nas diretas do PS e é um dos sete cabeças de lista que preenchem a quota do ministro da Administração Interna, que será número um no círculo de Braga.

E ainda é – como não voltará a ser – presidente da Assembleia da República, por escolha pessoal de António Costa.

Como é também, e sobretudo, a melhor imagem da renovação e rejuvenescimento ou transição geracional que era suposto existir com a chegada à liderança de Pedro Nuno Santos.Que é nenhuma, até ver.

A composição dos órgãos sociais do PS já o prometia.

A unidade do partido em vésperas de eleições gerais aconselhava ao acordo entre vencedor e vencido e, agora, as listas de candidatos a deputados até deram para incluir o irrelevante terceiro concorrente.

«Quem estava à espera de uma rutura com o passado está muito enganado», foi a declaração de Pedro Nuno Santos no final da reunião que aprovou as ditas listas por unanimidade e aclamação.

Com toda a propriedade.

A comprovar a ‘continuidade’ há seis círculos eleitorais em que o PS apresenta como cabeças de lista ministros em funções: Braga (José Luís Carneiro), Coimbra (Ana Abrunhosa), Lisboa (Mariana Vieira da Silva), Guarda (Ana Mendes Godinho), Setúbal (Ana Catarina Mendes) e Viana do Castelo (Marina Gonçalves).

Além disso, há ainda três secretários de Estado também ainda em funções (Paulo Cafofo, na Madeira, Isabel Ferreira, em Bragança, Nuno Fazenda, em Castelo Branco) e noutros dois círculos eleitorais (Fora da Europa e Leiria) o primeiro lugar é ocupado pelo ainda presidente da Assembleia da República (Augusto Santos Silva) e pelo líder parlamentar cessante (Eurico Brilhante Dias).

Ora, se tivermos em conta que Pedro Nuno Santos, cabeça de lista por Aveiro, foi membro dos Governos de António Costa durante sete anos, e ainda que Jamila Madeira (cabeça de lista por Faro) foi secretária de Estado da Saúde de Marta Temido…

Por junto, a renovação geracional resume-se ao convite declinado por Álvaro Beleza para ser cabeça de lista em Vila Real – perante a oposição das estruturas locais – e à passagem de testemunho de Carlos César, que porém continua presidente do partido, a Francisco César como cabeça de lista pelos Açores. Nas listas do PS, pelo menos entre os cabeças de lista agora apresentados, não há independentes nem personalidades da sociedade civil que se destacaram em outras áreas de atividade que não seja a política.

O que, diga-se em abono da verdade, é uma fragilidade muito mais da responsabilidade da direção do partido cessante e do que fez (e não fez) o Governo agora em gestão, ambos liderados por António Costa, do que de quem acabou de chegar à liderança socialista e mal sequer teve tempo para se sentar no gabinete do Largo do Rato.

Tudo visto e somado, Pedro Nuno Santos vai às urnas com o que sobra do PS de António Costa (excluindo apenas o ramo podre que o seu antecessor se recusou sempre a podar e que acabou por ser uma das causas da sua queda do poleiro).E assim, se perder, ninguém internamente o poderá responsabilizar – a culpa será sempre de Costa e do PS que deixou em legado. E, se ganhar, a vitória será sempre dele, o novo líder, que, nesse caso, triunfaria não obstante a pesada herança. Em qualquer dos casos, Pedro Nuno Santos terá sempre tempo para, a seguir e com tempo, fazer ou ir fazendo as suas escolhas e a inevitável renovação no partido.

O PS de António Costa morre definitivamente a 10 de março, com missa cantada e de corpo presente.

Por isso, Augusto Santos Silva sabe que o PS já o libertou, a tempo de ainda poder ir dar aulas.