‘Momente’ de Stockhausen pela primeira vez em Portugal

A Orquestra e o Coro Gulbenkian apresentam hoje, em primeira audição nacional, a peça Momente de Karlheinz Stockhausen, que o compositor português Pedro Amaral garante ser «a mais complexa e maior do repertório contemporâneo para coro».

a estreia nacional verifica-se às 21h00, 49 anos após a audição da primeira versão, em colónia, contando agora com a soprano júlia bauer, como solista, com a direcção de orquestra do regente e compositor húngaro peter eötvös, a direcção do coro de jorge matta e o «desenho de som» de pedro amaral, cuja tese de doutoramento partiu exactamente desta obra, que trabalhou com o próprio compositor alemão.

«além de toda a arquitectura formal que é extravagante e extraordinariamente complexa, esta obra é sobretudo uma coisa muito simples: uma carta de amor», disse pedro amaral, que foi maestro assistente na preparação da peça. para o compositor português, a estreia nacional promete «uma qualidade de interpretação» superior à de outras versões.

«a base textual da obra [tem] diversas fontes, desde frases soltas e apontamentos do próprio stockhausen, até ao cântico dos cânticos, do antigo testamento, tendo o compositor escolhido a tradução feita por martinho lutero».

«a principal fonte é o cântico dos cânticos que é uma apoteose bíblica do amor e até fazendo esta ponte muito especial entre o amor humano, com todas as suas variantes, e o sagrado. tal como o cântico dos cânticos já é uma sacralização do amor humano, esta obra transfere essa sacralização para a parte estética e para uma obra de arte», acrescentou pedro amaral.

sendo a principal parte o cântico dos cânticos, stockhausen utiliza ainda um verso de william blake – «if you kiss the joy/leaves in an eternal sunrise» («aquele que beija a alegria vive no amanhecer da eternidade») -, frases rituais numa língua que não falamos, que recuperou de uma obra etnográfica que explora os ritos sexuais das ilhas do norte da melanésia e «passagens de uma carta de amor que lhe escreveu a sua companheira da altura, a artista plástica mary bauermeister».

a artista terá aliás outra influência na criação desta obra, pois, segundo disse pedro amaral, mary bauermeister afirmava a stockhausen que se este era capaz de fazer um esquema teria de ser capaz de o quebrar, «o que stockhausen tinha uma dificuldade tremenda em fazer».

«e efectivamente nos momente, ele quebra o sistema anterior», referiu pedro amaral, o único compositor português distinguido com o prémio roma, antigo discípulo de emmanuel nunes no conservatório superior de música de paris, que trabalhou com peter eötvös, emilio pomarico e o próprio karlheinz stockhausen.

pedro amaral explicou o percurso da obra do compositor de darmstadt desde o início da década de 1950, em quatro peças que são «formas estruturais»: os punkte, «uma obra sinfónica extraordinária», os kontra-punkte, que explora contrastes entre diferentes timbres, os gruppen, «a apoteose do sistema serial», e os momente que estabelecem «uma linguagem radicalmente transformada em relação à anterior, a linguagem serial».

«a linguagem serial era a elaboração exaustiva de um sistema, e esta [a dos momente] vai ser a quebra desse sistema e a transformação do sistema sintáctico por um sistema formal», reforçou pedro amaral.

«a evolução da linguagem desde o chamado ‘pontilhismo’, em que tudo se concentra no ponto, que tem uma nota, um timbre, uma dinâmica, uma intensidade. e daqui passamos para o grupos – os pontos passam a organizar-se em linhas, em curvas, e mais tarde, em momente, que são conjuntos mais complexos», explanou o compositor português.

questionado pela estreia em portugal, cerca de 50 anos depois da estreia mundial em colónia, pedro amaral afirmou que esta é uma obra que apenas se podia fazer na fundação gulbenkian e que tem tudo para «nos encher de orgulho», por «esta estreia portuguesa ser uma produção nacional» e por nunca ter atingido «uma qualidade de interpretação» como a que vai ser apresentada quinta-feira à noite no grande auditório da fundação, à palhavã, garante o compositor português, antigo colaborador de stockhausen, que fez dos momente motivo de investigação e tema da sua tese de doutoramento em composição.

«o único sítio em que se podia fazer esta obra era a gulbenkian, que tem uma orquestra e coro disponíveis para este tipo de projectos; a outra é o s. carlos, mas é uma casa de ópera», argumentou.

pedro amaral começou a preparar o coro de 48 vozes em julho, um factor a ter em conta nas programações das orquestras e coros.

«são cerca de duas horas de música que precisam de meses e meses de preparação, porque a música de stockhausen é densa e complexa, e esta é a obra mais complexa e seguramente a maior do repertório contemporâneo para coro», salientou.

pedro amaral é o responsável pelo desenho de som, porque «esta obra envolve, como stockhausen sempre idealizou, vários meios diferentes: misturava meios electrónicos com meios acústicos e os momente têm ao mesmo tempo fontes meramente acústicas e, sobre algumas dessas fontes, há um tratamento sonoro».

«a soprano solista é amplificada em grande parte da sua intervenção, há algumas outras vozes que são amplificadas e difundidas em tempo real, e isso requer um desenho de som que funciona em tempo real», acrescentou o compositor que trabalhou no ircam – instituto de pesquisa e de coordenação acústica/música, lançado por pierre boulez, em paris.

na sexta-feira, verifica-se nova interpretação da obra, no grande auditório gulbenkian, em lisboa. pedro amaral adiantou que a fundação gulbenkian conta voltar a apresentar momente em nova ocasião, embora ainda não estejam agendadas quaisquer datas.

lusa/sol