Monumento ao escritor desconhecido

Paul Schrader, argumentista de obras como Taxi Driver, Touro Enraivecido ou A Última Tentação de Cristo, queria lançar-se como realizador. Viria aliás a fazer um par de filmes francamente estimáveis, como American Gigolo ou Autofocus.

contudo, nervoso e talvez pressionado pela severa educação dos pais fanáticos religiosos que só o deixaram ir ao cinema a partir dos 18 anos, desejava ter as costas o mais quentes possível. assim, terá alegadamente pedido conselho ao mestre, de quem era cúmplice habitual, martin scorsese. que conselho mais precioso poderia este dar-lhe em prol do fito perseguido?

segundo reza a lenda, martin scorsese pediu ao pupilo paul que passasse por sua casa no dia seguinte, onde lhe passou para as mãos uma caixa cheia de cassetes. imagina-se o delírio de schrader, certamente convencido de que teria assim direito a uma verdadeira masterclass de 7.ª arte ao domicílio por obra e (de) graça de um dos maiores realizadores da história. qual não terá sido o seu espanto ao verificar que todas as obras providenciadas pelo guru eram, na verdade, filmes porno. constrangido, presume-se, schrader demorou a reencontrar-se com scorsese. quando o inevitável tête-à-tête sucedeu, terá sido este o diálogo:

martin – então, viste os filmes que te aconselhei?

paul – sim… bem… nem todos… peço desculpa, mas o que é que supostamente devo retirar dali como lição?

martin – não percebeste? muito simples: get to the fucking point.

uma boa história para ilustrar a regra do less is more. também útil para contrariar o registo de escritores com tendência para o prolixo. e o país está pejadinho de gente que parece escrever de smoking, deleitados com todas as palavrinhas caras que conhecem. aqui não, a economia de palavras, a concisão, urgem. depois conto-lhes o episódio entre josé cardoso pires e o seu amigo e editor nelson de matos. o primeiro vem sorridente ao encontro:

nelson – então, feliz? foi um bom dia de trabalho?

josé – foi óptimo! escrevi dois parágrafos!

e eles ficam com a noção de que transparecer simplicidade dá muito trabalho, é um ofício de ourives. depois desafio a plateia a procurar imagens no intuito de evitar o literal, a descrição potencialmente aborrecida (excepto, claro, se forem porventura iluminados pelo espírito de eça). e segue o exemplo inesperado, quando um jornalista de a bola, em vez de descrever uma exibição do tosco trinco paulo almeida – um rapaz que jogou no benfica apesar de ter uma pança igual à minha – com as palavras do costume (mau, lento, flop, nada acrescenta), preferiu escrever o seguinte: «faz lembrar o escolho de um naufrágio, à deriva no meio do mar, para incómodo das gaivotas». e já agora um contraponto, daqueles que menos se esperam. quando uma consagradíssima romancista portuguesa, numa passagem sexual de um dos seus livros mais apreciados, pôs a protagonista a ‘dizer’ isto: «e então tu apontaste-me a tua espingarda de carne, e deste-me um tiro». procurar imagens é um desafio aliciante, desejável mas, como se vê, não isento de riscos.

mas quem é, afinal, este misterioso público entretido? são turmas dos workshops de escrita criativa que vou leccionando há pouco mais de três anos. tantas pessoas capazes de se surpreenderem a si próprias, tanto talento anónimo. torço para que um dia, entre as histórias que partilho, estejam as deles.

ii – a disputa pelo ‘like’

há dias escrevi o seguinte na minha página de facebook, relacionado com o resgate financeiro à itália: a bola de neve iniciada na grécia não tem parança… agora é a itália a precisar de ajuda. espero que não cheguemos a um ponto em que o país considerado o berço da civilização ocidental também acabe por se tornar na sua morgue. o post teve uns decentes 67 likes. mas deixa um amargo de boca ao escriba, persuadido de se tratar de uma frase bem conseguida, com um certo nível de cultura e clareza na conclusão. presunção e água-benta à parte, o relativo desgosto com este puro e simples entretém resulta dos dados comparativos. se fizer uma graçola sobre o universo futebolístico ou visando uma qualquer estrela ascendente (exemplo: concorrentes de reality-show, curiosamente com tempo médio de vida, regra geral, bem inferior ao das cadentes) é certo e sabido que o número de likes/gostos ascenderá às centenas. é como diria aquele saudoso radialista da ‘ripa na rapaqueca’: «é disto que o meu povo gosta».

com um grupo de amigos chego mesmo a fazer uma espécie de tertúlia virtual na disputa do like: uns vão pelas frases entre o amor e a filosofia, considerações rés-vés-campo de ourique com a lamechiche – garantia de sucesso absoluto junto das solteironas ou daquelas pessoas cuja foto de perfil é um animal, paisagem ou flor. outros optam pela bojarda oscilante num espectro que vai do libidinoso ao escatológico. volta e meia dá-nos para a cultura geral. o que interessa é que ninguém se magoe e a auto-ironia prevaleça. e, fazendo de conta que esta página é um monitor de pc, despeço-me do leitor com um ponto e vírgula + fecha parêntesis 😉

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