Norma

Hoje em dia não sei como é que os pais olham para os festivais de Verão, mas lembro-me de como é que os meus pais olhavam para os festivais de Verão quando ainda tinha de lhes pedir autorização para ir… E não era com bons olhos. 

A primeira vez que quis ir a um Festival foi no Verão dos meus 17 anos, porque vinha cá tocar The (International) Noise Conspiracy, no extinto Carviçais Rock. Além de querer muito ir e não ter propriamente idade, não tinha companhia. Como é que convencia os meus pais a ir de Montemor-O-Novo a Carviçais, uma freguesia remota no concelho de Torre de Moncorvo, assim, sem mais nem menos? Sem estratégia, com a independência proporcionada por alguns trocos poupados e depois de um debate aceso sério ao estilo análise SWOT de uma ida a um Festival de Verão, lá consegui uma autorização. E no dia em que, de mochila às costas e um estilo desajustadíssimo à cena festivais, me fiz à rodoviária, li no jornal que a banda que queria ver em Carviçais tinha cancelado o concerto. Não cheguei a comprar bilhete, sequer. Voltei para casa e fiquei à espera que nos próximos dias alguma coisa fizesse valer a pena a conquista na batalha que tinha travado. 

Ir a festivais dependia do cartaz e da relação que se tinha com as bandas que estavam confirmadas. Pelo menos para as pessoas que gostavam de música com fervor. Ia-se a um festival porque isso representava uma fuga à norma, uma experiência redentora, partilhada com uma série aparentemente infinita de pessoas ‘nichentas’ e desajustadas. 
Travavam-se algumas batalhas com os pais. Compravam-se guerras. E sempre por causa do que representava ir a um Festival de Verão e poder ver os concertos das bandas inaudíveis que se ouviam religiosamente durante todo o ano lectivo enquanto se imaginava um mundo sem pais, regras, norma, gente chata, burocracias, responsabilidades e tantos outros flagelos sociais então distantes. Aldeias com tudo aquilo com que um rebelde sonhava, e acima de tudo, SEM PAIS. Neverland. 

O desconhecido inspira sempre medo. Por isso, os Festivais eram perigosos. Tinham álcool, drogas, má alimentação, gente a fazer negócios ocasionais altamente lucrativos e ‘aquela música’. Os Festivais não eram para os adolescentes que tinham boas notas e vestiam pantones claros. Nem para betinhas. Os Festivais eram para a malta da pesada. Para os inadaptados. Era para quem não queria ir de férias para a praia. Para quem odiava discotecas, chinelos, o sol, o mar, o Verão e as festas do branco. 

O carácter independente dos Festivais e dos festivaleiros parece ter sido abafado. Não posso fabricar teorias e dizer quais terão sido os factores que levaram os festivais de Verão onde estão hoje, até porque não sou uma festivaleira assim tão convicta quanto isso (vou quando vai uma banda que gosto, ou quando vão amigos lá tocar), mas posso afiançar que a realidade dos festivais hoje é normativa, inclusiva, tolerante e abrangente. Não me parece que os festivais sejam programados para tribos urbanas específicas ou que se invista em bandas com fraca visibilidade sem se investir em nomes mainstream. Uma coisa compensa a outra e os festivais são balanças onde se equilibram a manipulação dos desejos de convivência entre gerações, nichos e tribos, através da programação ecléctica. A macro escala, a globalização e a expansão dos mercados, juntamente com os apoios publicitários e a luz do dia que são as redes sociais, exercem a força necessária para a desmistificação transversal do derrotado Monstro dos Festivais. 

Acho que sou capaz de afirmar que a cultura dos Festivais em Portugal, assim mais alargada às tribos urbanas e a públicos jovens, teve uma curta duração. O culto pré-massificado de um modus vivendi intencionalmente marginal, durou até que surgiram em força os Festivais urbanos, muito mais limpos, acessíveis e integrados. Muito mais fáceis de ter os carros dos pais estacionados à porta a uma hora certa. Muito mais fáceis de normalizar os comportamentos outrora desviantes. Muito mais programados para todas as idades, e por isso muito mais aceites.

Dessa aceitação derivará, então, a facilidade hoje implícita numa viagem até um Festival. A balança equilibra, também, essa parte.

Não me interpretem mal! Adoro isto agora! Desbravou-se mato e é nos Festivais que se podem ver artistas que de outra forma não veríamos! Dou graças eternas por isso! Aliás, se tudo tiver corrido bem, ontem vi o Kendrick Lamar no Primavera e hoje estou em êxtase! Quero apenas chegar à ideia de que os Festivais de Verão já não assustam pais, porque deixaram de ser um movimento de ruptura para passarem a ser a norma. A forma mais natural de assistir ao espectáculo de um ídolo. 

joanabarrios.com